Austeridade na recessão dos outros...

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Schadenfreude é uma palavra alemã que, traduzido para português, significa algo parecido com um vingativo “bem feito”. Uma espécie de satisfação pelo infortúnio alheio, sobretudo quando este envolve uma boa dose de ironia do destino. Como quando descobrimos que aquele vizinho ou colega que passa o tempo a atirar pedras sobre a moral alheia tem afinal frágeis telhados de vidro - e não conseguimos evitar um sorriso interior.

Terá sido isso o que motivou o desabafo do ex-governador do Banco de Portugal Vítor Constâncio na rede social X, na última semana, quando começaram a surgir os primeiros ecos de que Angela Merkel, a ex-chanceler alemã que a Europa conheceu como rosto da famosa austeridade, defende agora um alívio das regras da dívida no seu próprio país - uma Alemanha encostada à parede pelas ameaças de recessão numa economia estagnada e por uma crise política que pode escalar a instabilidade no Velho continente e no projeto europeu.

“Ah, a inevitável schadenfreude ao ver alemães, de Merkel ao meu antigo colega do BCE, Jürgen Stark!, a propor a eliminação do “travão da dívida”, após a loucura de introduzi-lo em 2009, no auge da crise, para substituir a regra de ouro, em vigor com sucesso desde 1969!”, escreveu Constâncio, referindo-se ao mecanismo que Merkel fez introduzir na Constituição alemã no auge da crise financeira, em 2009, limitando a contração de nova dívida a 0,35% do PIB anual e exibindo orgulhosamente um cinto apertado que impôs como modelo a seguir sem piar por esses obesos da dívida a sul, os tais que ficaram convenientemente lacrados na história com o acrónimo de PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha).

Nesta mesma última semana em que assistimos ao volte-face de Merkel também vimos, pela primeira vez, os juros da dívida francesa a 10 anos ultrapassarem os da Grécia, o país mais dizimado pela austeridade imposta pelo eixo franco-alemão na crise financeira de 2008. E vimos ainda a Comissão Europeia advertir os países tradicionalmente frugais como Países Baixos, Áustria e Alemanha pelo aumento expressivo da despesa, agora que voltaram as regras orçamentais a vigorar.

A Schadenfreude é inevitável. Mas só por breves instantes. Assinaladas as ironias do destino, sobra uma preocupação maior sobre um projeto europeu que, como mostram todos os indicadores, está a ficar bem para trás da China e dos EUA na criação de valor. E cuja necessidade quase bíblica de investimento vincada pelo famoso relatório Draghi - o homem que conseguiu reduzir o impacto da austeridade cega com o seu “whatever it takes” de juros baixos enquanto presidente do BCE - não é, simplesmente, compatível com as regras existentes. Até a austera Merkel já o percebeu.

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