Audácia (ou falta dela)

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Lubmin em Setembro

Numa manhã de Setembro de 2018, um navio colossal, o Audácia, aproximou-se de Lubmin, nas costas do Báltico. Transportava consigo uma carga cintilante, toneladas de pipelines de aço que reluziam ao sol de Outono; no dorso, em letras garrafais, tinham inscritas breves palavras, Nord Stream 2.

Meses antes, em Janeiro de 2018, o secretário de Estado Rex Tillerson declarou que a América e a Polónia se opunham ao projecto com esse nome, o qual foi também contestado pelo então presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, pelo primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki, pelo presidente Donald Trump, pelo presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Boris Johnson, pelos primeiros-ministros da Itália e da Hungria, Matteo Renzi e Viktor Orbán.

Já antes, muito antes, em Março de 2016, nove líderes europeus - os primeiros-ministros da República Checa, da Croácia, da Estónia, da Hungria, da Letónia, da Polónia, da Roménia e da Eslováquia, e o presidente da Lituânia - tinham escrito uma incisiva carta ao presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, alertando-o para que o Nord Stream 2 ir ter "consequências geopolíticas desestabilizadoras na Europa".

Desde que foi lançado, no longínquo ano de 1997, o projecto Nord Stream tem sido alvo de intensa controvérsia. O maior pipeline submarino de gás do mundo, com um comprimento de 1.222 quilómetros, o Nord Stream 1 liga Vyborg, na Rússia, a Lubmin, nas costas do Báltico. Além de sérias preocupações ambientais, desde logo porque induz o consumo de uma fonte de energia não renovável e altamente poluidora, com um poderoso impacto carbónico (cada par de condutas do Nord Stream pode gerar emissões de 110 milhões de toneladas de CO2/ano), contrariando frontalmente a agenda de descarbonização e combate às alterações climáticas firmada no Acordo de Paris, o gasoduto russo-alemão levanta problemas de vária ordem, afecta a vida marinha numa vasta área geográfica e revolve os fundos de um mar onde, durante décadas, foi sendo despejado de tudo um pouco: minas por deflagrar, cadáveres de soldados, carcaças de navios e de submarinos da 2.ª Guerra, resíduos e materiais tóxicos, armamento químico, toneladas de lixos perigosos.

Entre as muitas ironias desta história, uma das maiores reside no facto de Lubmin, o porto de chegada do Nord Stream e do Audácia, ser uma terra particularmente flagelada por inundações e pela subida do nível das águas dos oceanos. Foi submersa nas horríveis cheias do Dia de Todos os Santos do distante ano de 1304, mas agora, com as alterações climáticas, tudo é ainda pior: no final de 2020, voltou a ser inundada e, segundo os climatologistas, ao longo do século XX o nível das águas subiu 15 centímetros na costa alemã do Báltico. Por estranha coincidência, ou talvez não, o terminal do Nord Stream fica a poucos metros dos diques e das barreiras com que Lubmin tenta desesperadamente proteger-se do avanço dos mares. Com o gasoduto russo-germânico, o cenário piorará, bastando lembrar que o gás é um fortíssimo emissor de metano e que o metano tem um efeito-estufa 28 vezes superior ao CO2. A ironia ainda é maior - e mais cruel - se lembrarmos que a principal indústria de Lubmin, situada no antigo território da RDA, era uma gigantesca central nuclear, que teve de ser encerrada em 1990 por não cumprir os requisitos mínimos de segurança e cujos custos de demolição são actualmente astronómicos, a prova provada de que, ontem como hoje, a cegueira e a ganância em matéria ambiental e energética acabam por pagar-se muito caro, com a factura geralmente entregue às gerações seguintes. É ali, em Lubmin, cemitério atómico ameaçado pelo aquecimento global, que desagua o gás vindo da Sibéria, extraído em campos onde outrora morreram milhares de vítimas de Josef Estaline. O mundo é um lugar estranho.

Apesar de instada a fazê-lo, a empresa responsável pela construção Nord Stream recusou considerar sequer as alternativas terrestres propostas pela Finlândia, pela Polónia, pela Lituânia e pela Letónia. Para muitos desses países, com destaque para a Ucrânia, o abandono dos actuais gasodutos terrestres implica uma quebra considerável de receitas, na ordem dos 1,5 mil milhões de dólares ano, além de uma perda sensível de importância geopolítica e de aumento de sua exposição face à eterna ameaça da Rússia. Há poucos meses, a 23 de Agosto do ano passado, o presidente da Ucrânia, Volodomir Zelensky, avisou a chanceler Angela Merkel que o Nord Stream 2 era uma "arma geopolítica perigosa", facto que não impediu a continuação do projecto, pese a advertência de Zelensky, o qual à hora em que escrevemos se encontra sitiado e em perigo de vida em Kiev, enquanto o gabinete da antiga chanceler Merkel emite um comunicado de imprensa a lamentar a "guerra de agressão" travada pela Rússia e tal "ruptura profunda na história da Europa".

O Nord Stream 2 mereceu a viva oposição de Donald Trump, um presidente sobre o qual ainda pairam suspeitas de ter sido corrompido pelos russos, e que agora louva o "génio" militar de Vladimir Putin. A ameaça de sanções por parte dos EUA motivou, por seu turno, uma forte reacção da Europa: em Junho de 2017, a Alemanha e a Áustria criticaram o Senado dos Estados Unidos por discutir e tentar aprovar, sem sucesso, sanções às empresas envolvidas no gasoduto russo-alemão. O chanceler austríaco Christian Kerr e o ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Sigmar Gabriel, disseram que o fornecimento de energia para a Europa só aos europeus dizia respeito. Nos ataques a Washington destacar-se-ia o então ministro das Finanças, Olaf Scholz, actual chanceler da Alemanha, que afirmou na altura que a atitude da América era uma "ingerência grave nos assuntos internos da Alemanha e da Europa", tendo um porta-voz da União Europeia lamentado a "imposição de sanções a empresas da UE que desenvolvem negócios legítimos".

E, de facto, a parceria com a Rússia proporcionou muitos negócios, talvez nem todos legítimos, a gigantes como a petrolífera finlandesa Neste, as alemãs Ruhrgas, Wintershall, BASF, E.ON ou Europipe, a italiana Snamprogetti, subsidiária da Eni, a japonesa Sumitomo Heavy Industries, as britânicas Royal Dutch Shell e Rolls Royce plc, as dinamarquesas Rohde Nielsen A/S, Ørsted A/S e Rambøll, as holandesas Gasunie, Royal Van Oord e Royal Boskalis Westminster N.V., a francesa Engie, a austríaca OMV, a americana Dresser-Rand Group a suíça Allseas S.A., a malaia Wasco Energy, entre muitas outras.

Os custos do Nord Stream 2, estimados em 9,5 mil milhões de euros, são partilhados em partes iguais entre, por um lado, a Uniper, a Wintershall Dea, a OMV e a Royal Dutch Shell e, por outro, a Gazprom. A engenharia financeira do gasoduto é muito complexa, mas envolve empréstimos de mais de 26 bancos comerciais, e intervenções do Crédit Agricole e da Société Générale, da UniCredit, do Deutsche Bank, do Royal Bank of Scotland (ABN Amro), do Dresdner Kleinwort (Commerzbank), com assistência jurídica da firma de advogados norte-americana White & Case, sediada em Nova Iorque, e da britânica Clifford Chance.

O Nord Stream 1 foi inaugurado em Novembro de 2011 pela chanceler Angela Merkel, pelo então presidente russo Dmitri Medvedev, e pelos primeiros-ministros holandês e francês, Mark Rutte e François Fillon (Fillon demitiu-se há pouco do cargo de administrador da petrolífera Zarubeshneft e da Sibur, a maior petroquímica da Rússia, para o qual havia sido nomeado em Dezembro passado). A cerimónia teve lugar simbolicamente em Lubmin, onde ainda hoje decorrem os dispendiosos trabalhos de demolição de uma central nuclear dos tempos da Alemanha comunista.

Foi também lá que, em Maio de 2018, se iniciou a construção do Nord Stream 2. Pouco depois, numa manhã de Setembro, chegaria o Audácia, carregado de pipelines. Apesar da resistência americana, de Trump e também de Biden, Washington viria a alterar a sua posição e, em Maio de 2021, Merkel e Joe Biden chegaram a um acordo sobre o gasoduto. Em Junho, o secretário de Estado Antony Blinken considerou o projecto "inevitável", sendo descartado o apelo feito em Roma, em Dezembro passado, pelo primeiro-ministro polaco Mateusz Morawiecki, que instou o novo chanceler alemão a "não ceder à pressão da Rússia e a não permitir que o Nord Stream 2 seja usado como um instrumento de chantagem em relação à Ucrânia, de chantagem contra a Polónia e de chantagem contra a Europa".

A Gazprom, gigante oculto

Como um gigante oculto, a Gazprom está no epicentro da actual crise de Ucrânia. Num notável livro acabado de sair, Criminels Climatiques - Enquête sur les multinationales qui brûlent notre planète (La Découverte, 2022), o jornalista luso-descendente Mickaël Correia descreve a Gazprom como um "ogre fóssil" e um dos "maiores poluidores climaticidas do planeta", tal é a quantidade de CO2 que, ao longo de décadas, tem lançado na atmosfera.

O seu modus operandi é, por vezes, singular. Em Fevereiro de 2009, o Ministério Público da Suécia abriu uma investigação a um centro da Universidade de Gotland, vindo-se a descobrir que a Nord Stream fizera um estranho donativo de cinco milhões de coroas suecas (cerca de meio milhão de euros) a um dos investigadores desse centro, que tinha manifestado reservas quanto à construção do Nord Stream, alegando que ele iria pôr em causa os habitats de muitas aves do Báltico. Por outro lado, um relatório elaborado em 2018 pelo Grupo Ecologista do Parlamento Europeu, intitulado Revolving Doors and the Fossil Fuel Industry, analisou as "portas giratórias" entre a política e as empresas de energia, tendo destacado a obscura acção da Gazprom/Nord Stream nesses domínios pantanosos. Mesmo nos países nórdicos, tidos por modelo de transparência, o panorama é assustador: na Suécia, a Nord Stream contratou os serviços de Ulrica Schenström, antiga secretária de Estado do gabinete do primeiro-ministro Fredrik Reinfeldt, entre 2006 e 2007, a qual teve de se demitir após um jornal ter revelado fotografias suas a abraçar e a beijar, num restaurante de Estocolmo, um dos mais conhecidos jornalistas políticos do país. Para os quadros do consórcio do gasoduto foi também uma figura destacada do Partido Social-Democrata, Dan Svanelli, assessor de imprensa de sucessivos líderes desse partido. Na Finlândia, foi-se mais alto e a Nord Stream conseguiu contratar os serviços de um antigo primeiro-ministro, Paavo Lipponen, consultor da companhia desde 2008, tendo o escândalo sido agravado pelo facto de, em completo despudor, a contratação ser anunciada enquanto decorria a invasão russa da Ossétia do Sul. Lipponen renunciou a todos os cargos públicos, abandonou o gabinete no parlamento, escreveu um artigo a criticar a extrema dependência da Europa em relação ao gás russo, mas a controvérsia marcou-o para sempre: a Polónia vetou a sua candidatura a responsável pelas relações externas da UE e, em 2012, quando se candidatou às presidenciais finlandesas, obteve uns míseros 6,7% dos votos, a mais baixa votação de sempre dos sociais-democratas nessas eleições. A Finlândia também não saiu a ganhar com a pertença do seu ex-PM aos quadros da Nord Stream: no momento em que escrevemos, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia dissuadiu quaisquer veleidades finlandesas de aproximação à NATO, dizendo que, se tal acontecer, o país sofrerá "sérias repercussões políticas e militares".

A Áustria tem sido dos fervorosos defensores do Nord Stream e, ao que parece, tentou até bloquear a suspensão da entrada em funcionamento do projecto, imposta há pouco pelo chanceler alemão, na sequência da bárbara invasão da Ucrânia. Para isso tem contribuído por certo a acção de Hans Jörg Shelling, que, enquanto ministro das Finanças, de 2014 a 2107, supervisionou a participação de 31.5% do Estado austríaco na empresa energética OMV, um dos cinco investidores estrangeiros do Nord Stream 2. Acontece que, escassos três meses após ter abandonado a pasta das Finanças, Shelling foi contratado como consultor do Nord Stream 2, cargo que ainda mantém. Não contente, em 2019 passou a integrar também os quadros da energética OMV, cargo que teve de abandonar pouco depois, por violação grosseira do "período de nojo" imposto aos políticos austríacos. Ainda assim, e como se disse, continua a trabalhar para a Nord Stream 2, o mesmo se passando com Marion Scheller, que desde 2013 dirigiu o departamento de política energética do Ministério da Economia da Alemanha, abandonando esse lugar-chave em 2016 para ingressar nos quadros da Nord Stream, como "conselheira sénior para as relações governamentais", eufemismo para acções de lóbi.

Entre os 88 casos de "portas-giratórias" desvendados no relatório de 2018 dos ecologistas do Parlamento Europeu, o mais escandaloso e grotesco de todos é o de Gerhard Schröder, o qual, enquanto chanceler da Alemanha, entre 1998 e 2005 (numa coligação com Os Verdes, lembre-se), foi o maior apoiante ocidental ao projecto do gasoduto com a Rússia. Em Outubro de 2005, poucas semanas antes de se demitir, o governo de Schröder concedeu a garantia de um empréstimo no valor de mil milhões de euros ao Nord Stream. E, logo depois de resignar, Schröder foi nomeado presidente do conselho de supervisão da Nord Stream AG, passando em 2016 a integrar o seu conselho de administração; em 2017, seria nomeado por Vladimir Putin para o conselho de administração da Rosneft, a maior companhia petrolífera russa, facto tanto mais escandaloso quanto, na altura, a Rosneft estava a ser alvo de sanções económicas do Ocidente devido à crise da Ucrânia. O seu alinhamento com Moscovo tem sido constante e sem falhas: em 2007, Schroeder colocou-se ao lado do Kremlin numa disputa com a Estónia a propósito de um memorial de guerra; em Agosto de 2008, culpou o Ocidente pela invasão russa da Ossétia do Sul; em 2014, relativizou a conquista da Crimeia por Moscovo, comparando-a à intervenção da NATO no Kosovo. Para coroar tudo isto, celebrou o seu 70.º aniversário no Palácio Yusupov, em São Petersburgo, na companhia de Vladimir Putin. Agora, existem muitas pressões para que saia da Nord Stream, mas de momento ainda nada aconteceu.

Na América, a Nord Stream pagou cinco milhões de dólares a Vincent Roberti e um milhão de dólares a Walker Roberts, da empresa de lóbi BCR Group, para influenciarem o Congresso dos EUA a favor do gasoduto russo-germânico. Não se sabe o que fizeram, mas sabe-se que no Congresso não foi alcançado o número de votos necessário para que as sanções fossem aprovadas. O caso mais grave prende-se, porém, com o director executivo da Nord Stream 2, Matthias Warnig, um antigo oficial da Stasi, que muitos dizem ter colaborado directamente e ficado amigo de Vladimir Putin quando este trabalhava para o KGB na Alemanha. A sua pertença aos serviços secretos da RDA é factual e incontroversa, até reconhecida pelo próprio, mas, sobre a relação com Putin, Warnig diz que o conheceu apenas em 1991, quando o actual líder russo dirigia as relações internacionais do município de São Petersburgo. É, ainda assim, um conhecimento antigo, que permitiu, por exemplo, que o Dresdner Bank se instalasse em 1991 em São Petersburgo, graças à intercessão de Warnig que, naturalmente, viria a ser nomeado presidente do conselho de administração da filial russa do Dresdner. Em 2012, Warnig foi nomeado presidente do comité de supervisão da Rusal, a segunda maior companhia de alumínio do mundo, tendo de resignar em 2018, quando Trump impôs severas sanções a essa empresa. Em todo o caso, e em síntese, é esta figura com fortes e antigas ligações a Vladimir Putin que ocupa e continua a ocupar o cargo de CEO da Nord Stream AG, em cujo conselho de administração se sentam, além de vários membros da Gazprom, Gerhard Schröder, Hans-Ulrich Engel, CEO da BASF, a francesa Isabelle Kocher, da Engie (antiga GDF Suez), ou Johannes Teyssen e Marc Spieker, da alemã E.ON.

E agora?

Em Agosto de 2018, a revista The Economist chamou ao Nord Stream 2 "o mais controverso projecto energético do mundo", dizendo que ele iria "isolar a Ucrânia" (sic) e alertando para a crescente dependência da Europa relativamente ao gás russo. Poderão existir muitas explicações, históricas e geopolíticas, culturais e estratégicas, para a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mas se é possível apontar uma razão para Vladimir Putin ter avançado da forma como avançou, essa razão é só uma: o gás. Com a dependência extrema da Europa face à energia vinda da Rússia, Moscovo sabe que quaisquer "sanções" ocidentais, por muitas duras que sejam, nunca poderão ultrapassar certos limites, sob pena de o Kremlin encerrar o Nord Stream 1 e de cortar o fornecimento de gás à Europa. Por isso, o destino da Ucrânia já estava traçado e escrito há muito, antes sequer de as tropas russas se terem deslocado para a fronteira. A drôle de guerre a que se assistiu durante dias, semanas, com um timing de reacção mais do que tardio e as primeiras medidas só terem sido tomadas quando os russos já estavam na Ucrânia dentro, mostra bem o temor e a imensa fragilidade de uma UE à mercê do gás vindo da Sibéria e dos humores de um homem com "olhar de alumínio", como o descreveu Anna Arutunyan em A Mística de Putin. Com os russos instalados em Kiev, ninguém pensou, nem poderia pensar, em acabar com os fornecimentos vindos do Nord Stream 1, enquanto Suíça, a cloaca do mundo, as autoridades logo invocaram a neutralidade para dizer business as usual em matéria de protecção e sigilo para as contas das empresas russas, oligarcas e mafiosos. É aliás em Zug, na Suíça, que se situa a sede da Nord Stream AG, uma companhia cujo presidente executivo, nunca é demais recordar, foi um antigo oficial da polícia política da Alemanha comunista. Só isso, sem mais nada, deveria ter bastado para abrir os olhos da Europa ou, melhor, da Alemanha. Mas nem isso, nem a brutal ocupação da Geórgia, nem a anexação da Crimeia, nem a chacina da Síria, nem os escândalos com ex-políticos (o alemão Schröder, o finlandês Lipponen, o austríaco Shelling), nem as centenas de sangrentos confrontos no Donbass ao longo de anos, nem os 15 mil mortos na Ucrânia, nem as ameaças da América, nem as críticas dos ecologistas, nem os avisos da Ucrânia, da Polónia (em 2006, um ministro polaco comparou o Nord Stream ao pacto Molotov-Ribbentrop), da Estónia, da Hungria, da Letónia, da Roménia, da Eslováquia e da Lituânia, nada, enfim, demoveu a Alemanha, a Áustria e a França deste projecto suicida - e homicida. Para esses países - e é preciso dizê-lo -, a soberania da Ucrânia, a liberdade e o bem-estar do seu povo, a segurança e a democracia na Europa valeram menos, muito menos, do que o gás vindo das estepes da Sibéria. Em 2019, o CEO da Gazprom congratulou-se publicamente por ter distribuído os dividendos mais altos da história da companhia: em apenas um ano, a capitalização bolsista da empresa tinha crescido 87%. A factura veio agora, e pagamos nós por ela.

Ao longo de anos, sem tratar de ter uma política de defesa e segurança própria e comum, abrigando-se comodamente sob o escudo protector da NATO e dos EUA (isto enquanto atacava a "ingerência" americana quanto ao Nord Stream), a União Europeia não curou de diversificar as suas fontes de energia e de fazer uma aposta séria nas renováveis, com isso colocando em risco o seu futuro e o futuro de milhões de cidadãos, postos à mercê de um ditador sem escrúpulos e de um regime corrupto, vulneráveis à catástrofe climática iminente e já em curso.

Entre outros desastres, a UE foi incapaz de perceber que a actual Rússia de Vladimir Putin já nem sequer é um Estado, mas um jogo de espelhos, um teatro de sombras que joga com os conceitos e as distinções do passado (capitalismo vs. comunismo, Oeste vs. Leste) para instaurar um regime em tudo se mistura e confunde e em que se conjugam, por um lado, os extremos mais extremos do capitalismo selvagem, sob a forma de uma cleptocracia de oligarcas, e, por outro, do autoritarismo de Estado encarnado num tirano sem escrúpulos. Apesar da falta de liberdade, da morte dos opositores, dos atropelos aos direitos humanos, das bárbaras perseguições, foi com ele que a chanceler alemã se sentou, negociou, afinou os termos de uma parceria energética desastrosa e criminosa sob todos os pontos de vista, económico e político, geoestratégico, ambiental. A Leste, o agressor é Putin, mas, do nosso lado, a catástrofe da Ucrânia tem um nome e um rosto, Angela Merkel.

Por cegueira de vistas, pura inconsciência, avidez do lucro e aberrante indiferença aos destinos da Ucrânia e Estados limítrofes, a energia da Europa foi tratada como uma questão comercial, quando ela é essencialmente um problema político e geoestratégico. Ora, não é a mesma coisa comprar o gás a uma democracia comercial, como os EUA, ou a uma ditadura que nos quer destruir, como a Rússia. A partir daí, ficou decidida a sorte de uma nação inteira, há muito escrita nas estrelas. Sem arriscar prognósticos, o que sucederá num futuro próximo será, na melhor das hipóteses, uma deslocação para oeste da fronteira de insegurança, até aqui colocada na Ucrânia, mas doravante situada na Polónia, na Eslováquia, na Moldava e na Hungria, tudo países que, não por acaso, alertaram em devido tempo para a tragédia do Nord Stream. Este, claro, será aberto na altura própria, quando serenarem as opiniões públicas europeias, havendo para isso, como sempre, o argumento clássico de que "não há alternativa" e de que não se podem perder os investimentos feitos, da ordem dos milhares de milhões. O Nord Stream 2, convém lembrá-lo, estava pronto a ser estreado, brilhando como novo, não foi interrompido a meio curso, com obras por acabar.

Putin será afectado, sem dúvida, e a prazo tragado pela China, mas é ingénuo pensar que não sopesou ao milímetro os prós e contra desta aventura no Oeste, sabendo de antemão que tem a Europa aprisionada pela conta do gás: cerca de 41% do gás consumido na UE-27 provém da Rússia e há países, como a Hungria e a República Checa, em que se essa dependência chega a quase 100%. Agora, Ursula von der Leyen parece ter acordado de uma letargia de meses ou anos, e os líderes da União, esquecendo-se do que há pouco diziam da "ingerência" americana na matéria (o ano passado!), falam atabalhoadamente na necessidade de diversificar as suas fontes da energia. Tarde piaram.

Por outro lado, a actual fase de "unidade europeia", com declarações grandiloquentes para consumo mediático, passará a breve trecho, sendo substituída por um ressentimento fundíssimo, e mais do que justificado, dos países do extremo Leste relativamente à Alemanha, mas também à França e, por arrasto, a toda a União. As tensões já experimentadas entre a Polónia e a Bielorrússia tenderão a agravar-se e o nacionalismo autoritário de Varsóvia e Budapeste ganhou aqui um novo fôlego e um poderoso arsenal propagandístico devido à "traição" de Berlim e Bruxelas. A Europa uniu-se por momentos contra a ameaça da Rússia, mas a prazo é enorme o potencial de desintegração da UE, com graves riscos de novos "Brexits" no Leste. Ao visar Kiev, Putin quis, acima de tudo, atingir Bruxelas, e conseguiu. Chapeau.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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