Até que a bolha rebente
No sábado passado, debaixo de 40º, o povo saiu à rua. Sim, o povo. Cada vez mais se afirma a luta por uma vida digna, não ter de escolher entre pagar a renda ou comer. A crise da habitação tem-se agravado, com valores a atingir novos máximos históricos, comprovando que o rumo político traçado até agora não é eficaz e empurra cada vez mais pessoas para soluções precárias e indignas.
A gentrificação que afeta Lisboa e outros territórios esvazia bairros, expulsa comunidades, despeja associações, fecha comércio de bairro. Regressamos ao final dos anos 80: surgem novas barracas, situações insalubres, não por opção, como alguns querem fazer passar, mas porque é a única forma de (sobre)viver. A fratura entre uma minoria que acede a fogos a preços altos e a maioria da população, que vive à justa ou a quem o salário não chega a meio do mês, é evidente. Aos 50 anos regressa-se a casa dos pais, partilha-se casa. Nas famílias de rendimentos intermédios há quem se endivide, com taxas de esforço brutais, na ilusão de ter casa própria.
Deixar o acesso à habitação ao mercado, onde reina o lucro e a especulação, já provou não ser solução. Já deviam ter soado há muito os alarmes perante um relatório da Comissão Europeia que confirma o país precisar de soluções sistémicas e de curto prazo, que travem a subida dos preços e aumentem a oferta de casas.
Olhemos a realidade sem dogmas. A capacidade construtiva atual procura os segmentos imobiliários mais altos e está aquém das necessidades. O tempo de obra não responde às exigências imediatas. Se insistirmos nas mesmas fórmulas, jamais enfrentaremos as necessidades das famílias.
O Censos 2021 diz-nos com rigor que as casas devolutas atingem a ordem das 725 mil, só na AML são 150 mil, 48 mil em Lisboa, das quais 2 mil propriedade do Estado e Município. Não há falta de casas em Portugal, mas a maior parte é privada, está devoluta e não entra no mercado por diversas razões, nomeadamente ser detida por fundos de investimento que estão à espera da maré alta da especulação. Estas casas deviam contribuir para resolver a crise da habitação.
Até que se sinta o resultado de medidas estruturais como o aumento do parque público, que está hoje nos 2%, quando a média europeia é de 12%, imagine-se que das 725 mil devolutas 10% eram mobilizáveis. Num curto espaço de tempo, teríamos 72 mil a nível nacional e quase 5 mil só em Lisboa. Uma escala destas, não só aumentava a oferta a preços acessíveis, como baixaria o valor das rendas.
Um imenso parque de casas inativo quando se vive esta crise de habitação é um crime social (até económico e ambiental!). Impõem-se a conjugação de medidas políticas e fiscais que conduzam à mobilização desses fogos para programas de habitação pública. Não, não se trata de tirar a propriedade a quem quer que seja. Simplesmente disponibilizá-la de forma legal e temporária para que, nesta emergência, cumpra a sua função social, como prevê a Lei de Bases da Habitação.
E nem tudo precisa de ficar sob gestão do Estado. Ter cooperativas de habitação a gerir estes fogos enquanto estiverem mobilizados é outra forma de construir cidade e comunidade. Não podemos é continuar a insistir que o mercado vai resolver o problema. Não vai e, até que a bolha rebente, só o vai agravar.
Vereadora independente, Cidadãos Por Lisboa, na CML