Até um dia, DN
Onze anos e mais de 1200 crónicas depois, escrevo hoje o meu último artigo no Diário de Notícias. Termino esta longa relação por iniciativa própria, com a consciência do quanto estou grato ao DN, às cinco direções que acreditaram no meu trabalho, aos jornalistas com quem aprendi e aos leitores que me foram acompanhando com inúmeras manifestações de crítica construtiva, mordaz ou dilacerante. É mesmo assim a vida de um escriba: dá o que tem, recebe o que merece. Guardo por isso, já com alguma nostalgia, emails, mensagens nas redes sociais, até cartas, de muita gente anónima para a qual, no fundo, procurei sempre escrever, simplificando o que parecia analiticamente complexo e complicando o que era aparentemente simples de analisar. Fi-lo sempre procurando melhorar o artigo anterior, a sua escrita, renovando ângulos, trazendo perspetivas menos trabalhadas no debate público, casando dinâmicas internacionais com o papel de Portugal no mundo. Acredito que o fiz sem qualquer tática, partindo para cada texto com mais dúvidas do que certezas, aprendendo com elas. Qualquer analista profissional sabe que sem uma inquietude permanente dificilmente lhe é despertada a adrenalina necessária para enfrentar o artigo seguinte.
Foram 11 anos de análise da política internacional contemporânea, quanta dela imediatista, errática, suscetível de falhas interpretativas. Devo dizer que convivo bem com isso. Acho até natural que o erro nos acompanhe, maltrate e seja absolutamente implacável. Só quem mantém um espaço de análise política tão diversificada como a que a política internacional oferece percebe o arco de falibilidade a que estamos permanentemente sujeitos. Além do mais, sempre achei que só se melhora escrevendo, reescrevendo, escrevendo mais, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Devo por isso muito aos primeiros seis anos de DN, nos quais escrevi três crónicas curtas por semana, um exercício complexo mas muito útil como aprendizagem da métrica analítica e do encadeamento seco de argumentos.
Durante estes 11 anos, procurei também não ficar sentado à secretária, à espera de eventos para os analisar. Por isso escrevi crónicas a partir de mais de 30 países, acompanhei eleições, manifestações, efemérides, decisões de impacto duradouro, conversei com muitos participantes em processos de decisão ou outros que partilhavam dores semelhantes às minhas. Considero que, apesar das dificuldades que o jornalismo atravessa, continua a existir uma margem criativa para se poder ir ao terreno, ver e respirar o que se analisa, partilhar experiências e colher melhores ângulos locais. Este é, aliás, um exercício vital à saúde do jornalismo e da própria democracia: sairmos do comodismo de secretária e calçarmos os sapatos dos outros. Cultivemos, por isso, mais empatia e menos tribalismo, mais humildade e menos o absolutismo das nossas verdades.
Estes anos de DN foram também de grande intensidade na minha vida pessoal. Fui três vezes pai, escrevi sete livros, alguns deles recetores evidentes das reflexões que aqui fui fazendo. Viajei muito. Aceitei alguns desafios empolgantes, descartei outros tantos. E mudei a forma de olhar para a sociedade, para o papel do Estado, para a política, para o mundo e, também por isso, tal como fiz amigos, perdi alguns outros. Aceito isso com a naturalidade que os percursos ideológicos inevitavelmente carregam e devo dizer que estou confortável com o caminho percorrido. Não há mudanças pessoais sem custos pessoais. Tal como não existem delapidações nas democracias sem efeitos perversos no nosso futuro coletivo. Espero que o Diário de Notícias consiga o lugar que merece no jornalismo português e que a democracia saia a ganhar com isso. Obrigado, DN. Até um dia.
Investigador