Assad e uma Síria de novo a ferro e fogo

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Hama, agora tomada pelos rebeldes sírios, é uma daquelas cidades do Médio Oriente tão antigas que para se sintetizar a sua história fala-se dos hititas e dos assírios, dos romanos e dos bizantinos, dos muçulmanos e dos cruzados, até dos mongóis (que no século XIII a pilharam), também dos otomanos e ainda dos franceses, os últimos colonizadores daquelas terras árabes, onde convive islão sunita e xiita, cristãos de várias confissões e ainda comunidades como a drusa. Mas o episódio que marca mais a Hama de hoje é o massacre de 1982, quando o exército governamental sírio bombardeou a cidade para eliminar uma sublevação islamita. Tudo ficou em ruínas, e terão morrido dezenas de milhares de pessoas. A ordem para arrasar veio do presidente sírio, Hafez Al-Assad, oriundo da comunidade alauita, grupo minoritário afiliado ao islão xiita e defensor de um certo laicismo do Estado.

Mais de 40 anos depois do massacre de Hama, a cidade volta a ser notícia, por ter sido tomada pelos rebeldes sírios, grupos islâmicos sunitas em boa medida herdeiros da ideologia daqueles que foram esmagados em 1982. Em retirada está o exército governamental, que obedece ao presidente Bashar Al-Assad, o filho de Hafez, que pensava ter triunfado na guerra civil iniciada em 2011, mas surpreendido há poucos dias por uma ofensiva vinda da província de Idlib, o último bastião rebelde.

Há provavelmente um papel da Turquia neste reacender da guerra, até porque Ancara tem vários interesses na Síria, desde querer um regime aliado em Damasco até contrariar os grupos curdos, ligados aos separatistas curdos da própria Turquia. Aos turcos interessa também aumentar o chamado território livre na Síria, de modo a procurar reenviar os refugiados que vivem no país. Ao todo, a guerra civil síria fez mais de 500 mil mortos, sete milhões de deslocados internos e seis milhões de refugiados, muitos dos quais se instalaram na vizinha Turquia.

É evidente, porém, que a fragilidade demonstrada pelo regime - que viu os rebeldes do Hayat Tahrir Al-Shams, a antiga Frente Al-Nusra ligada à Al-Qaeda, tomarem Aleppo, agora Hama e vão já a caminho de Homs - resulta sobretudo do fraquejar dos russos e do Hezbollah e até do Irão. À medida que a guerra se arrasta na Ucrânia, a Rússia tem preocupações maiores do que vir em socorro de Assad, mas mesmo assim são aviões russos os mais eficazes em atrasar a progressão dos rebeldes. Também o conflito com Israel no Líbano deixou enfraquecido o Hezbollah, outro dos aliados do Governo de Damasco, que conta igualmente com o apoio do Irão e das milícias xiitas iraquianas nesta guerra que é entre sírios, mas também é regional e até possui uma dimensão global (os Estados Unidos mantêm uma base no sul da Síria, mesmo depois de terem derrotado o Estado Islâmico). 

Graças a uma espécie de trégua entre a Turquia e a Rússia em 2020, Idlib transformara-se no último refúgio dos rebeldes e o Governo de Damasco parecia desistir da sua reconquista, aproveitando para reforçar o controlo sobre as grandes cidades e o litoral. Assad trabalhou ao mesmo tempo para voltar a ser parte da comunidade internacional e a participação numa cimeira árabe indicava que, ao contrário dos ditadores tunisino, líbio e egípcio, conseguira resistir à Primavera Árabe. Um prémio a uma capacidade de resistência que foi sempre acompanhada por repressão duríssima. Mas se os rebeldes continuarem a avançar para sul, em direção a Damasco, já nada é garantido para os Assad, que governam desde 1970 esta Síria de novo a ferro e fogo. Desta vez, a batalha de Hama terá sido menos brutal.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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