As repercussões latino-americanas das eleições venezuelanas

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A proclamação de Nicolás Maduro como presidente da Venezuela, seis horas depois do fecho das eleições de 29 de julho, reforçou as linhas de rutura na América Latina, uma região já fragmentada. O anúncio do resultado foi feito pelo presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um organismo teoricamente independente, mas alinhado com o Executivo. 
Após a denúncia de fraude pela oposição venezuelana, os governos latino-americanos adotaram três atitudes: 1) crítica ou condenação ao chavismo, exigindo maior transparência no escrutínio, 2) felicitação a Maduro como legítimo vencedor e 3) México, apoiado na não-ingerência para reconhecer eventualmente o triunfo de Maduro. 

Um dos primeiros a manifestar-se foi Gabriel Boric, que exigiu maior transparência na entrega e na recontagem das atas, insistindo que os números do CNE são pouco credíveis. Em termos semelhantes pronunciou-se Bernardo Arévalo, presidente da Guatemala, expressando sérias dúvidas sobre os números e pediu transparência, certeza e respeito à vontade popular. 

A importância do pronunciamento de Boric surge da sua proximidade política a Maduro, ambos líderes progressistas. O chileno foi contundente ao criticar os excessos dos regimes autoritários e ditatoriais, como Cuba, Nicarágua e Venezuela. Nesta oportunidade, voltou a fazê-lo. Numa linha parecida, apesar de governos de direita, centro direita ou centro, está a declaração dos ministros dos Negócios Estrangeiros da Argentina, Costa Rica, Equador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai, expressando a “sua preocupação pelas eleições” e pedindo “a revisão dos resultados”, com respeito à vontade popular. Até falaram de pedir uma reunião urgente do Conselho Permanente da Organização de Estados Americanos (OEA). 

Parágrafo aparte merece a troca de insultos de Javier Milei com Maduro e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros Yván Gil. Na sua denúncia de “fraude”, Milei chamou-lhe de ditador. A resposta do venezuelano foi contundente. No festejo da sua vitória, entoou: “Milei, lixo, tu és a ditadura!” e apelidou-o de traidor e cobarde, enquanto Gil o chamou de “nazi nauseabundo” e acusou de ser fascista. O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, que cortou relações com a Venezuela, disse que houve fraude.

Em resposta, a Venezuela exigiu a saída dos diplomatas da Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai, e ordenou o regresso do seu pessoal desses países. Respondia assim às “ações e declarações ingerencistas de um grupo de governos de direitas, subordinados a Washington e aberrantemente comprometidos com os mais sórdidos postulados ideológicos do fascismo internacional”. Tudo no contexto de “respeitar, preservar e defender o nosso direito inalienável à autodeterminação”.

O que choca do comunicado é identificar Boric com o fascismo internacional e a dureza dos seus termos, que poderia concluir na rutura de relações diplomáticas entre os países envolvidos, algo impensável nos tempos de Hugo Chávez, cuja diplomacia estava mais preocupada pelas formas. 

A Colômbia e o Brasil ocupam um lugar intermédio entre o grupo que condena e a não-ingerência mexicana. A situação destes dois países, fronteiriços com a Venezuela, não é simples. Caso se retome o êxodo venezuelano, mais de dois milhões de pessoas poderiam unir-se às oito que já vivem fora do país. A Colômbia, que partilha com a Venezuela uma extensa fronteira, também tem intensas relações bilaterais, a começar pelo comércio. 

Devido a esta situação e a certas afinidades políticas com o regime de Maduro, tentou-se manter uma certa neutralidade, exigindo maior transparência, mas sem aprofundar na denúncia e sem condenar o governo venezuelano. Enquanto Gustavo Petro, com o seu habitual discurso florido, manteve o silêncio, o seu chefe da diplomacia, sem acusar a Venezuela, apelou a que se procedesse à “contagem total dos votos, à sua verificação e auditoria” o mais rapidamente possível. 

Lula também não fala, embora o Itamaraty (o Ministério dos Negócios Estrangeiros) e Celso Amorim se tenham pronunciado, sem condenar ninguém. Isso levou o ex-presidente Mauricio Macri a pedir a Lula, para além das suas diferenças políticas, que “não permanecesse calado”. Ainda é cedo para saber se existe algum diálogo com os EUA sobre a Venezuela, mas o governo brasileiro, que também insiste nos conceitos de “transparência, credibilidade e legitimidade”, sublinhou o “caráter pacífico” das eleições. Mas isto deve ser em simultâneo com a “verificação imparcial dos resultados”, verificando se o total de votos corresponde à soma de todas as mesas operacionais. 

No grupo que apoia o chavismo estão Cuba, Nicarágua, Bolívia e Honduras. Para o cubano Miguel Díaz-Canel, “a dignidade e o valor do povo venezuelano triunfaram sobre as pressões e manipulações”. O casal nicaraguense Ortega-Murillo saudou a “grande vitória” que o “heroico” povo venezuelano entregou ao “eterno comandante” Hugo Chávez no dia do seu aniversário. A hondurenha Xiomara Castro foi taxativa a transmitir uma “saudação democrática, socialista e revolucionária” a Maduro e ao “corajoso povo da Venezuela”. 

Finalmente, o México. Através de Andrés Manuel López Obrador disse que quando a CNE der a informação de 100% das mesas eleitorais, reconhecerá o novo governo, “porque assim é a democracia”. 
A decisão do regime chavista de falsificar a vontade popular teve impacto tanto nas relações bilaterais com os países da América Latina como nos laços intrarregionais. Isto pode aumentar o isolamento venezuelano em relação a uma boa parte da região, embora, para já, a relação com o Brasil e o México não esteja ameaçada. 

O futuro da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), comprometido pela tendenciosa presidência pro tempore hondurenha, poderá ser mais incerto. Em 2025, a Cimeira UE-CELAC será realizada na Colômbia. Se à rutura generalizada das relações diplomáticas se juntar a escalada dialética, as opções para uma maior cooperação latino-americana em qualquer questão da vasta agenda regional serão afetadas.

Investigador principal para a América Latina no Real Instituto Elcano

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