As regras do jogo
Lula da Silva escolheu 37 ministros: 37! O governo de Portugal, se não cair nenhum enquanto lê este parágrafo, tem menos da metade. Mas, num país continental e desigual, falta de tamanho não é documento - o de Jair Bolsonaro, o pior da história, tinha só 23, o de Collor de Mello, derrubado após penoso ano e meio, meros 12.
Entretanto, além de muitos, alguns dos novos ministros brasileiros, como Daniela Carneiro e Waldez Góes, não parecem grande coisa: ela é aliada política de milicianos (eufemismo para mafiosos) e ele foi condenado a seis anos de prisão por desvio de recursos públicos no Amapá em 2019.
Mas como Lula nomeia gente assim? Na verdade, a escolha não é exatamente dele: os dois ministros em causa foram indicados pela União Brasil, partido que resultou da fusão, em 2021, entre o DEM, descendente direto da Arena, o suporte da ditadura, e o PSL, a formação pela qual Bolsonaro se elegeu em 2018. O novo presidente atribuiu à União dois ministérios porque precisa dos seus 53 deputados para formar maioria no Congresso.
No Brasil, nem mesmo um presidente forte e bem avaliado, como os reeleitos Fernando Henrique Cardoso, em 1998, ou Lula, em 2006, consegue governar só com os políticos da sua área política num legislativo onde convivem parlamentares de quase 30 partidos, boa parte interessada apenas em dinheiro e cargos.
Metade das páginas do livro de memórias de Cardoso na presidência ocupa-se das dores de cabeça que esse grupo, comummente chamado de "centrão", lhe dava. Lula, antes de ser eleito, vociferava contra os clientelismos da política de Brasília; depois de subir a rampa em 2003, ao ser confrontado com as alianças estabelecidas com os políticos mais clientelistas de Brasília, reagiu com o célebre "se Jesus Cristo fosse presidente do Brasil, aliava-se até com Judas".
Bolsonaro, em campanha, também prometia "o fim do toma lá, dá cá", ou seja, o enterro da troca de votos por cargos. Saiu da presidência soterrado pelo "Bolsolão", um esquema de compra de votos de parlamentares com dinheiro público ao estilo do Mensalão do PT, mas cometido a céu aberto e muito mais caro aos cofres públicos.
E não dá para peitar o "centrão"? Dar dá. Dilma Rousseff peitou-o e sabemos como essa história acabou.
Entretanto, como é que essa gente, que troca sem pudor votos a favor do governo por cargos e verbas, é eleita? Não, os eleitores desses parlamentares não são ignorantes, nem ingénuos. Pelo contrário: no tal país continental e desigual preferem, precisamente, votar naqueles que garantem influência sobre o presidente (e consequentes dinheiro e obras para os seus colégios eleitorais) a escolher os que prometem atitudes muito republicanas (mas sem tradução prática em escolas ou hospitais).
Em resumo: enquanto não houver vontade política para as trocar, as regras do jogo são estas: o presidente, sem o Congresso, não governa; para o Congresso são eleitos os maiores caciques locais porque, usando outra expressão do léxico da política brasileira, até podem roubar (para o próprio bolso), mas fazem (realizações nas suas paróquias).
Quem não gosta, mais cedo ou mais tarde submete-se, assim como um tenista que queira trocar os courts pelos relvados de futebol se tem de submeter ao contacto físico - são as regras do jogo.
Daniela Carneiro e Waldez Góes não são mesmo grande coisa? Talvez não. Mas é o que se pode arranjar.
Jornalista, correspondente em São Paulo