As previsões dizem-nos que somos previsíveis

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Em Portugal, nada se inscreve, na história ou na existência individual (…) nada tem realmente importância, nada é irremediável... tudo entra na impunidade do tempo".
José Gil, filósofo, sobre o conceito da não-inscrição no livro “Portugal Hoje - O Medo de Existir”

Com a apresentação do seminovo Orçamento de Estado pelo novo Governo, abriram-se as comportas da guerra das décimas: o excedente orçamental é menor que o estimado pelos socialistas (passa de 0,7 para 0,3%); o PIB vai crescer apenas 1,5% (menos uma décima que o previsto pela AD); e a inflação agora sobe 2,5%, quando antes estava em 3,3%.

Há algo de fascinante na previsão económica. Fico sempre espantado pela facilidade com que a estatística deteta a previsibilidade. Um algoritmo, uma base de dados e um economista conseguem prever o futuro. Isto é incrível, sobretudo quando é certo e sabido que ninguém sabe o que vai acontecer no futuro.

Estamos no meio de duas guerras internacionais que têm tudo para correr mal, há todo um país a reclamar melhores condições salariais, e damo-nos ao luxo de dizer que vai haver um excedente orçamental de 0,3% no final do ano.

Claro que é importante definir objetivos para depois se trabalhar para os cumprir. E sabemos que o ministro das Finanças tem ferramentas - desde cativações a mudanças fiscais - ao seu dispor para conduzir o navio orçamental de forma a atingir, mais ou menos, o alvo.

Mas não deixa de ser intrigante pensar que só é possível fazer previsões com este rigor, se se mantiverem os padrões. Se continuarmos com os mesmos comportamentos; se as empresas fizerem o que sempre fizeram; se as escolas mantiverem o foco no ensino e não na aprendizagem. As previsões dizem-nos que somos previsíveis.

Quase todos passam quase todo o tempo, a fazer quase o mesmo. É por isso que nos tornamos previsíveis. Enquanto assim for, faremos sempre mais parte da estatística e menos da mudança. E quando nos transformamos em estatística, pensamos e sonhamos com décimas.

A raiz mais funda do problema é o medo. Fazer uma tarefa que já conhecemos dá-nos mais controlo; fazer algo de novo dá-nos incerteza e ansiedade (uma forma de medo). Usar o que sempre foi usado, dá mais garantias de não ficarmos “mal na fotografia”. O filósofo José Gil resume numa expressão feliz: os portugueses sofrem muito do “medo de existir”. O medo ajuda-nos a sobreviver, mas não nos ajuda a evoluir.

Ficamos assim nesta dualidade: jogar pelo seguro para não perder ou arriscar para ganhar? Esta é a encruzilhada da sociedade portuguesa. Se jogamos pelo seguro agarramo-nos às décimas. Se queremos jogar para ganhar, temos de nos agarrar à busca incessante do conhecimento. A competitividade ajuda a criar uma economia mais dinâmica, mas a mãe de todas as revoluções é o conhecimento transformador. Nada puxou tanto pela economia como a invenção do motor a vapor, a descoberta dos antibióticos, a revolução digital ou coisas simples como a mala com rodas.

Só que o conhecimento, por si só, não chega. Esse tem sido o erro do nosso sistema de ensino. Também é preciso atitude: precisamos de aprender a avançar, apesar do medo; precisamos de coragem para enfrentar os padrões estabelecidos; precisamos de mais inquietude e insatisfação para mudar; precisamos de aprender mais uns com os outros.

Na era da Inteligência Artificial, quanto mais robóticos formos, menos futuro teremos. Que se lixem as décimas. Não se acomodem na previsibilidade. Para nos afirmarmos mais e melhor no mundo, precisamos de pensar diferente para pensar grande.

É que, como disse Angela Merkel quando esteve de visita oficial a Portugal, “economia é 50% psicologia”.

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