Demoram-se as estátuas e quebradas serão tristeza de outras não talhadas..Jorge de Sena.As querelas recentes sobre a estatuária e a sepultura dos nossos dois maiores romancistas (Camilo e Eça) vieram mostrar quão lento é o tempo de reação dos portugueses, no que toca à sua sensibilidade e ao seu apego aos mortos. Há anos que a estátua de Camilo, com a sua calipígia acompanhante, fora colocada em frente à cadeia da Relação do Porto onde o grande escritor estivera preso; e há menos anos, talvez, mas há algum tempo já, que fora decidido por unanimidade pela nossa Assembleia da República a transferência dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional. Ao tempo destas duas decisões, ninguém protestou, ninguém falou, ninguém se manifestou..Agora criaram-se mais divisões entre os portugueses. Para uns (a quem chamarei aqui, sem ofensa, os do Alecrim), as nádegas da companheira de pedra de Camilo ofendem o bom senso, o bom gosto e o bom urbanismo da cidade do Porto; para outros (a quem, sem o menor animus injuriandi, chamarei os da Manjerona) a estátua simboliza a expressão sublime do amor em Camilo e seria uma ofensa à sua memória retirar aquela escultura do espaço público. Declaração de interesses: num e noutro lado desta grandiosa guerra tenho amigos que estimo e considero..Eça de Queirós teve também os seus problemas com a estátua que, logo após a sua morte, lhe foi erigida, no Largo do Barão de Quintela, em Lisboa, perto do Grémio Literário e da Casa Havanesa. Logo a seguir à inauguração do monumento (na época, o tempo de reação dos portugueses era mais rápido) surgiram críticas da opinião pública, em correspondências dirigidas ao jornal Correio Nacional (as cartas aos jornais constituíam as redes sociais da época), caracterizando a escultura como "por tal forma provocadora e lasciva que entendo ficar mal a uma cidade consenti-la numa das suas praças". A polémica durou algum tempo (com uma intervenção lamentável e vergonhosa do ciumento Ramalho Ortigão...), prolongou-se pelos anos fora, até que em 2001 a Câmara Municipal, face a sucessivas vandalizações do monumento, transferiu para o Museu da Cidade o original de mármore e manteve na praça uma cópia em bronze. E, no entanto, ao contrário da estátua portuense, nesta obra de Teixeira Lopes, virada para a nossa frente a figura feminina que representa a Verdade esconde de nós toda a sua parte calipígia, e talvez por isso ninguém agora se tenha lembrado, passado um século e meio, de vir reclamar ao Município de Lisboa o que foi requerido ao Município do Porto - abater as estátuas indecentes!.Mas nem por isso as más-línguas se esqueceram do Eça - passados dois anos sobre a decisão de transferir os seus restos mortais para o Panteão, um grupo de ex-autarcas de Baião e um pequeno número de descendentes de Eça de Queirós vieram requerer o cancelamento da cerimónia de trasladação, alegando o amor profundo de Eça pela sua casa do Douro (onde nunca viveu, que qualificou de "horripilante" em carta a sua Mulher, e que lamentou não ter as menores condições para ali a família fazer férias). É claro que se referia ao estado da casa na época, não àquele que resultou dos notáveis trabalhos de reconstrução e reabilitação, posteriores à morte de Eça, que foram promovidos pela filha Maria e continuados pelos seus descendentes, reconstrução que permitiu a instalação naquele local da Fundação Eça de Queirós, transformando uma casa onde Eça nunca viveu numa verdadeira "casa de escritor", que tem sabido homenagear da melhor maneira o espírito e a obra do nosso autor..Na opinião, porém, dos bisnetos dissidentes de Eça "o Panteão é um lugar mal frequentado: o bisavô iria ombrear com um futebolista, uma fadista, um regicida e, pasme-se, um resistente antifascista que nada fez pelo país além de ter sido assassinado pela PIDE" (cf. Público de domingo)..Isto dito, fica tudo dito! Palavras para quê?.Diplomata e escritor