As Amelianas

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Tanto lodo tem surgido na batalha campal em que se tornou a política portuguesa nos últimos tempos. Como diria Platão, pessoas sábias falam de ideias, pessoas normais falam de coisas, pessoas medíocres falam de pessoas. E, embora por vezes seja impossível não objectivar o discurso sobre actos e dizeres personalizados nas figuras políticas, obrigando à reflexão na pessoa ou na personalidade de quem nos governa ou pretende governar, há momentos em que o limite da saturação é atingido. Talvez seja hora de, se não tivermos para onde olhar porque já não se fala de ideias para o país, nos concentrarmos no farol que limpa a escuridão com uma luz forte e presente: a cultura.

Assim, destaca-se o ciclo pelo 160.º aniversário de nascimento da rainha Dona Amélia (28 de Setembro de 1865), a comemoração dos 120 anos da criação do Museu dos Coches Reais no picadeiro de Belém e dos 10 anos da criação do novo museu, que se inicia esta semana. Esse conjunto de actividades começa com um ciclo de quatro concertos no novo Museu Nacional dos Coches, denominado As Amelianas. O repertório desses concertos reflecte não só o gosto requintado da rainha, como também obras a ela oferecidas, dedicadas e para ela criadas, sublinhando o reconhecimento da sua faceta melómana e de grande mecenas. Devido ao percurso conturbado da história política de Portugal na primeira metade do século XX, muitas dessas obras foram esquecidas, e o perfil mecenático da última rainha de Portugal foi apagado, pelo que esta será uma oportunidade de ouvir algum do repertório pela primeira vez. Se bem que algumas obras conhecidas serão tocadas e cantadas, como árias de óperas de Handel ou sonoridades de Tchaikowsky, outras não tão familiares ou totalmente desconhecidas serão entoadas, numa panóplia bastante alargada, que vai das marchas militares, hinos, valsas, passando por pavanne, berceuses, até fados-balada para piano. Inicia dia 21 de Março, às 21h00, com entrada gratuita, mediante marcação prévia. Uma iniciativa da Ars Luminae, com interpretação de Rui de Luna, barítono.

Por vezes, é preciso esperar mais de um século para, com distanciamento, recuperar de forma objectiva e desapaixonada a obra, os feitos, o legado, que algumas personalidades nos deixaram. A figura da rainha Dona Amélia tem sido alvo dessa pesquisa, com destaque para as cartas e diários inéditos que José Alberto Ribeiro (director do palácio da Ajuda) na sua tese de doutoramento e biografia descortinaram, bem como este trabalho musical, fruto da investigação de Rui Castilho de Luna, devolvendo a Portugal o papel mecenático desta figura, tão maltratada, fruto de alguma historiografia do século XX politicamente enviesada.

Realmente, o que nos salva e nos eleva ainda é a cultura.

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