Arriscada foi a demora, não a decisão
A Rússia não tem de ser derrotada, muito menos destruída ou esmagada: só tem de ser travada. Não foi a Ucrânia que invadiu a Rússia. Foi Putin que, há quase um ano, optou pela decisão delirante e irresponsável da via maximalista (invasão total, em vez de incursão limitada no Donbass).
Se a Ucrânia parar de se defender, a Ucrânia acaba; se a Rússia parar de atacar, a guerra acaba. É esta a equação fundamental desta guerra inesperada, terrível e de duração imprevisível. Só quando compreendermos o seu verdadeiro alcance poderemos perceber, com total clareza, como é decisivo ajudarmos a Ucrânia a sobreviver como país independente e como identidade própria.
Dar carros de combate pesados à Ucrânia (Leopard 2 de fabrico alemão; Challenger 2 britânicos; Abrams M1 norte-americanos) não é escalar a guerra. Muito menos provocar a Rússia. É reconhecer à Ucrânia, o agredido, o direito de se dotar de "paridade de fogo" perante os instrumentos detidos pelo agressor.
Os objetivos do Kremlin já tiveram diferentes versões. Mas os textos russos de 2021, entregues à NATO como "draft" de futuras negociações, não deixam grandes dúvidas: Putin quer regressar à arquitetura de segurança pré-1997, entende o alargamento a leste da NATO como provocação e ameaça. Ou seja: a questão russa não se cinge à Ucrânia.
Moscovo já tinha desafiado o Direito Internacional em 2014 com a anexação da Crimeia e o conflito no Donbass - mas assumiu a 24 de fevereiro de 2022, sem pudor, a rutura com as regras do pós-II Guerra Mundial, de que as fronteiras não se definem à força bruta, mas com acordos e tratados. Se queremos continuar a viver num mundo definido por regras e não pelo poder das armas, temos de defender a Ucrânia nesta fase decisiva para o nosso futuro coletivo.
O cenário de negociações, até agora, não foi sério. Os pressupostos para a paz, dos dois lados, são inconciliáveis. Putin quer uma paz do agressor. A paz da Ucrânia ser subjugada pela Rússia, abdicar de 20% do seu território. Ou seja: não é paz alguma. Já a Ucrânia de Zelensky exige (e bem): retirada total das tropas russas; indemnizações de guerra; julgamentos de crimes de guerra; respeito pela Carta das Nações Unidas; recuperar a Crimeia. Perante o comportamento de Putin, também não é realista.
Depois desta guerra, acabe como terminar e dure o tempo que durar, a Europa não voltará a ser a mesma. O nosso espaço de segurança não voltará a ser o mesmo. Fará toda a diferença saber se a Ucrânia sobrevive como Estado soberano, sem a dependência da chantagem russa, podendo fazer as suas escolhas cruciais sobre alianças a adotar e instituições a aderir. Kiev está a lutar por nós, porque se a Ucrânia cair o poder bélico russo sentir-se-á empoderado a prosseguir a agressão para o "espaço pós-soviético".
O que acontecer na Ucrânia não ficará na Ucrânia.
A "coligação Leopard", cuja liderança finalmente a Alemanha assumiu, após semanas de hesitação, foi um bom exemplo do que está em causa. Scholz teve de esperar pelo conforto de Biden e só deu o "sim" ao envio dos carros de combate alemães (os seus e os reexportados por vários países europeus mais o Canadá) quando o Presidente dos EUA tomou a decisão corajosa e estratégica de contrariar a indicação do Pentágono e autorizar o envio de 31 Abrams M1. Foi momento-chave no reforço da coesão do "Ocidente alargado" na travagem à Rússia. Mesmo com tantas nuances de interpretação (a França de Macron continua a jurar que o seu inimigo não é a Rússia), a verdade é que, quase um ano depois, a aliança anti-invasão russa da Ucrânia se mantém com meia centena de países. O apoio à Ucrânia soma 57% da riqueza mundial (ainda que apenas um quarto da população mundial).
Ramstein-8 expôs contradições, mas obstáculo atrás de obstáculo, os aliados continuam a encontrar respostas para o essencial. Os EUA, com Biden, reencontraram a vocação liderante das democracias liberais. O Reino Unido descobriu na resiliência ucraniana uma espécie de redenção ao disparate do Brexit (bizarro exemplo de autoimposição de sanções). A UE exibe notável coesão. O Japão viu na invasão à Ucrânia o crime russo que não quer experimentar em doses bem maiores com assinatura chinesa, no Indo-Pacífico.
Os últimos anos foram de enormes desafios para a ordem internacional. A pandemia expôs fragilidades da China e, mesmo depois da emergência sanitária, criou disrupções nas cadeias de distribuição. A Guerra da Ucrânia poderia ter sido a estocada fatal (assim Putin o terá pensado): risco energético, volatilidade dos mercados, inflação galopante. Os problemas estão lá, mas o quadro atual mostra-nos boas surpresas: os EUA estão a conseguir controlar a inflação e podem voltar a ter crescimento; o desemprego continua baixo dos dois lados do Atlântico.
A supremacia russa nos últimos dois meses (sem avanços impressionantes no terreno, mas com pequenas vitórias em Soledar, a leste, e ameaças de regresso ao sul, em Zaporíjia) e sobretudo os sinais de mobilização iminente para antecipar para março a "grande ofensiva" russa que se esperava só para abril levaram a um momento de retrocesso ucraniano.
Os receios de que esta subida de patamar na ajuda militar à Ucrânia possam "atiçar" o urso russo falham no diagnóstico: arriscada, sim, foi a demora. Não a decisão.
Esperemos que não seja tarde.
Autor de cinco livros sobre presidências dos EUA