Aquilo que nasce torto ainda se endireita

Ninguém teria adivinhado, no primeiro dia de 2022, que António Costa ganharia uma maioria absoluta nas legislativas antecipadas, que a Rússia invadiria a Ucrânia até aos arredores de Kiev, que a União Europeia responderia em bloco e em força, que a Zona Euro sobreviveria à inflação e à crise energética, que a China reabriria radicalmente a sua economia no pós-pandemia e que a Goldman Sachs, imagine-se, declararia que a recessão não se abateria sobre nós, acabadinhos de sair da covid, do défice excessivo, dos fogos, da troika e demais tragédias nacionais.

Também ninguém imaginava que, entre uma coisa e outra, o governo do Partido Socialista implodiria sucessivamente, sobrevivendo apenas pela proximidade temporal à sua reeleição, pela incerteza da conjuntura internacional, pelo desnorte de uma direita que não passa de oposição a alternativa, pela subsistência de um Presidente-salva-vidas e pela persistência de um povo que só queria que não o chateassem e lhe dessem os serviços públicos que o seu esforço fiscal já paga.

Se recuarmos ao dia número 1, que celebra hoje o seu primeiro aniversário, facilmente nos lembramos de como tudo começou muito mal antes de sequer ter início. As primeiras crises políticas da maioria absoluta antecederam a sua tomada de posse. Uma delas deu-se no próprio ato eleitoral, quando 157 mil votos dos nossos emigrantes foram parar ao lixo por trapalhada entre os partidos e a secretaria do ministério da Administração Interna. Volvido um ano, diga-se, nenhuma alma se deu ao trabalho de retificar a lei que obrigou a repetir a votação das comunidades, atrasando em mais de um mês - o mês da invasão russa, por sinal - a inauguração do XXIII Governo Constitucional. Antes disso, refugiados ucranianos foram inusitadamente acolhidos por intérpretes putinistas, suspeitos de espionagem, mas simultaneamente financiados pela boa-vontade das autarquias portuguesas.

Quando António Costa foi finalmente indigitado primeiro-ministro pela terceira vez, já a sua maioria estava manchada com logísticas eleitorais, incidentes diplomáticos e filas intermináveis no aeroporto de Lisboa. É recordar os ciclos noticiosos dessa primavera. Quando o novo executivo finalmente tomou posse, no final de março, entrou-se nos carris, mas do disparate. Não haveria estado de graça, coisa que a vitória de 2019 tão-pouco recebera, nem estancar da desgraça.

Não tinha chegado o verão e as Urgências de Obstetrícia colapsavam com os feriados de junho. Marta Temido, então ministra da Saúde, rumava ao Parlamento para reconhecer - aleluia! - "problemas estruturais no SNS". Duraria mais 74 dias no cargo. Entre eles, Pedro Nuno Santos decidiu, decretou e despachou a localização de um novo aeroporto sem dar nota disso ao primeiro-ministro, que entretanto decidiu, decretou e despachou o mesmo Pedro Nuno para fora do governo por outra polémica igualmente incompreensível. A ministra da Coesão, soube-se, é casada com um homem que recebeu fundos europeus e os investiu com um sócio condenado por corrupção. Manuel Pizarro é tudo aquilo que já sabíamos que era, não tendo isso causado problemas de maior. Miguel Alves era tudo aquilo que já se sabia ser, tendo isso causado o maior dos problemas. Veio Alexandra Reis, saiu Alexandra Reis, e com ela meio milhão de euros dos contribuintes. Errou Fernando Medina, ficou Fernando Medina, e com ele um governo à beira da dissolução. Não vale a pena comentar a Agricultura porque, simplesmente, não existe. A Defesa idem, sendo atualmente um caso de polícia. Já o ministro da Educação, mais recentemente, acusou a greve dos professores de impedir operações em hospitais. De certeza que me esqueci de um deles, mas o leitor, perdoando-os a eles, perdoar-me-á a mim.

"Estabilidade sem inércia", prometeu António Costa, nos primórdios desta saga, há um ano. Instabilidade inerte é o que entregou aos portugueses, passado esse ano. E as sondagens não o ignoram. No aniversário da maioria absoluta, o eleitorado que disse "sim" ao PS começa a sair de casa, procurando paixões mais coloridas no Chega e no Bloco de Esquerda. Será uma separação sem divórcio? É cedo para dizer. Que o matrimónio não tem sido feliz, é uma evidência. Que 2023 será o ano dos apoios extraordinários, tornar-se-á evidente em breve.

Nesta tão disfuncional relação, a chave para a reconciliação estará no dinheiro, isto é, nas Finanças.

A política, afinal, sempre foi um casamento de conveniências.

Colunista

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG