Aos vindouros

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Mas vós, quando chegar o tempo
em que os humanos 
sejam para os outros humanos
como irmãos, pensai em nós 
com piedade.

Bertold Brecht, 
Carta aos Vindouros

Hoje, passados 50 anos do 25 de Abril, só quem tiver mais de 60 anos poderá ter uma memória mais definida dessa data, muito feita das memórias do eco dos acontecimentos no meio familiar e na escola e depois do que se foi lendo e refletindo sobre as transformações que Abril abriu, no dizer do poeta Ary dos Santos.

Mas não é nesses que penso, nesses que, mais jovens do que nós, vieram atravessar connosco todos estes anos e são eles agora a moldá-los. Não, eu penso nos que virão depois de nós, nos nossos vindouros e naquilo que eles pensarão e farão do que lhes deixámos.

E não é difícil, para quem tenha netos ou para quem olhe as crianças que encontra na rua, encarar os vindouros.

Depende de nós que eles vivam num regime de liberdade política e de Estado Social, com abertura para todas as opções de vida e de relacionamento pessoal, sempre que não ofendam a liberdade dos outros, ou que voltem ao nacionalismo de sacristia, que nós bem conhecemos, em que se perseguiam todas as opiniões divergentes e modos de vida diferentes, regime que se prepara para regressar com outras roupas e outra maquilhagem, mas com os mesmos princípios fundamentais: Deus, Pátria e Família.

Depende de nós que eles tenham as garantias de um Estado Social ou que sejam abandonados pela sociedade à estrita capacidade do seu poder económico. Depende de nós (mas agora a uma escala global) que eles vivam num mundo equilibrado por regras ou num mundo governado por guerras, num planeta capaz de acolher os humanos ou num mundo em que as derivas climáticas e ambientais condicionem cada vez mais a nossa sobrevivência.

Não creio, infelizmente, num mundo em que os homens possam ser irmãos, como no poema de Brecht. Mas acredito, “contra todas as evidências”, como Manuel Gusmão dizia da alegria, na possibilidade de uma sociedade decente. E acredito ainda, não numa paz perpétua, como pretendia Kant, mas na possibilidade de uma regulação mundial que permita evitar muitas das guerras que nascem, como nos ensinou Freud, do nosso inescapável instinto de morte e da nossa insaciável vontade de poder.

Ao nível do nosso “jardim à beira mar plantado”, é nosso dever não deixar murchar os cravos da liberdade e do progresso social e transmitir a esses vindouros que já olham para nós e que têm pela frente um mundo à sua procura, “as fundações de um mundo mais humano”, para continuar a citar o poema de Brecht.

Abril cumpre-se todos os dias e nunca podemos esquecer que, como dizia Thomas Jefferson, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Uma democracia adormecida é uma democracia em risco mortal.

Por isso hoje, mais do que pensar no jovem de 23 anos que eu era no dia da Revolução, penso nos meus filhos e nas minhas netas e naqueles que lhes sucederão. Mas para poder pensar o futuro, tenho de encarar o presente. A nossa responsabilidade pelos vindouros passa pela nossa pesada responsabilidade pela situação presente.

A História depende do que fizermos dela: servidão ou liberdade.

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