Ao encontro do ponto de fuga

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Há poucos dias terminou mais uma edição do programa literário “Disquiet”, iniciativa conjunta da editora Dzanc Books, sedeada no Michigan (EUA), e do Centro Nacional de Cultura, na qual mais de uma centena da escritores norte-americanos participaram com autores portugueses num momento único, de que se assinalou a décima terceira edição, um encontro cultural em nome da liberdade criativa, visando aprofundar o conhecimento entre escritores dos dois lados do Atlântico e divulgar a sua obra. A própria designação, desde as suas origens, centra-se na ideia de “desassossego” de Bernardo Soares e Fernando Pessoa. E, como lembraram Scott Laughlin e Richard Zenith, a memória inspiradora do poeta Alberto Lacerda (1928-2007), falecido em Londres, está bem presente e mobiliza este encontro. E quando lemos do poeta Labareda - Poemas Escolhidos (com seleção e prefácio de Luís Amorim de Sousa) compreendemos bem a importância desta referência, bem como a ligação ao papel inovador das vanguardas de Blast (1914-15) de Whyndham Lewis e de Orpheu (1915) de Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.

Coincidido com este programa, na Fundação Gulbenkian, termina dentro de uma semana a importante exposição Arte Britânica - Ponto de Fuga, que apresenta mais de cem obras de 74 artistas de primeira importância, entre os quais: Bridget Riley, David Hockney, Antony Gormley, Francis Bacon, Rachel Whiteread, Frank Auerbach, ou David Bomberg. E a memória de Alberto Lacerda está bem viva, já que assim como no “Disquiet” é a ideia de emancipação e de intercâmbio que reúne Paula Rego, Bartolomeu Cid dos Santos, Menez, Eduardo Batarda, Fernando Calhau, Graça Pereira Coutinho, João Penalva e Rui Sanches - que procuraram formação neste “ponto fuga” que era a cidade de Londres. Os casos de Alberto Lacerda, como antes de António Pedro e Ruben A., de Paula Rego, de Bartolomeu Cid dos Santos, de João Cutileiro, de Jorge Vieira permitem a compreensão da importância da experiência britânica, como fator de emancipação, de cosmopolitismo e de inserção nas novas tendências. Simultaneamente não pode esquecer-se, como foi salientado por Henda Ducados, a tomada de consciência da questão africana através das intervenções de Joaquim Pinto de Andrade e de Amílcar Cabral junto da Câmara dos Comuns. Paula Rego é especialmente representativa, neste contexto, estando desperta para os grandes desafios do seu tempo, bem espelhados na sua obra, uma vez que a sua grande originalidade é fruto da relação estabelecida com o ambiente, o intercâmbio e o espírito cultivado entre os artistas britânicos e as suas instituições. Quando tomamos contacto com a experiência destes artistas e intelectuais verificamos um tensão virtuosa entre o desafio lançado por um ambiente de liberdade, como era o londrino, contrastante com uma lógica limitativa, fechada e protecionista. Pode dizer-se que é o melhor espírito do português que aqui se manifesta. Trata-se de um verdadeiro caleidoscópio que permanentemente transforma a visão que temos da realidade histórica, fazendo-a desenvolver-se. O exílio e a aprendizagem desta geração de portugueses ao encontro do mundo constituiu uma experiência única, em que cultura, educação e formação se uniram e se projetaram numa realidade poliédrica, que se foi desenvolvendo e metamorfoseando. Como diria Ruben A., houve que abrir caminho para que pudéssemos pensar.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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