Antonio Tabucchi
A palmeira não está lá, mas está a lembrança dela. Naquele pequeno jardim juntaram-se os amigos de Antonio Tabucchi numa destas manhãs de Lisboa, com céu azul, o frio próprio de fevereiro e o calor da memória. E lembrámos, nas proximidades da rua do Monte Olivete, a S. Mamede, alguns passeantes que teríamos gostado de voltar a encontrar por ali, deambulando - além do próprio Antonio, Alexandre O"Neill, José Cardoso Pires, Ruben A. ou Fernando Lopes. E a placa descerrada por Maria José de Lancastre e pelo Presidente do Município ficará a assinalar que aquele espaço invoca a cultura e a literatura, mas também a justiça e a liberdade, num encontro de sonhos e espíritos. E a Presidente da Junta de Freguesia, Carla Madeira, tornou claro o compromisso de que a memória do escritor italiano, europeu, cidadão e homem de cultura, português por escolha do coração, que ali se invoca, continuará a ser referência e exemplo, e motivo para que se não esqueça que não há palavra viva sem partilha de pensamento. "Quem sabe se um romance escrito numa língua que não é a nossa não poderá nascer de uma minúscula palavra que, essa sim, é exclusivamente nossa e não pertence a mais ninguém. Às vezes uma sílaba pode conter o universo". E que melhor referência do que um jardim para representar a cultura, mesmo nestes dias de inverno quando se prepara a renovação da natureza?
E ficam as lembranças bem evidenciadas em Afirma Pereira, a partir do Bairro Alto, onde se situava o "Lisboa", no fatídico agosto de 1938, até à Brasileira do Chiado ou à Casa do Alentejo, passando pela jornada de sonho de Requiem, livro que Antonio, italiano apaixonado por Portugal, escreveu inteiramente em português. E relemos o sonho de Tabucchi, por exemplo na apresentação do Vendedor de Histórias, sobre uma sereia que trabalhava num circo e que se apaixonou por um pescador da Ericeira: "Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento"... E era esse encantamento que o escritor permanentemente procurava.
Em "Sonho de Sonhos", há um encontro com Fernando Pessoa numa estranha viagem ao encontro de Alberto Caeiro, que culminaria no dia triunfal de 8 de março de 1914. E afinal foi a leitura de um discípulo de Caeiro, o engenheiro Álvaro de Campos, em Tabacaria, numa publicação comprada na Gare de Lyon em Paris, que trouxe Tabucchi até à nossa cultura... E recordei naquela manhã, o dia de fevereiro de 1988, em que acompanhei em Lisboa, com Antonio Tabucchi, Umberto Eco, que veio a convite de Mário Soares realizar na Fundação Gulbenkian a Conferência intitulada "O Irracional, o Misterioso, o Enigmático", que seria apresentada, a uma verdadeira multidão, por Eduardo Prado Coelho. Entediado com as perguntas absurdas e preguiçosas que lhe faziam nas entrevistas, Eco estava sobretudo preocupado com o bom senso, a prudência, a dúvida e os consensos provisórios, mais do que com quaisquer certezas fechadas... Com sentido de humor e abertura de espírito, era a cultura como liberdade que lhe importava essencialmente. E hoje a leitura da obra de Antonio Tabucchi é isso que continua a revelar-nos. De facto, como recordaria em 2008 a Adelino Gomes, havia que lembrar Fernando Pessoa, quando ele dizia: "Falta por aqui uma grande razão."
Prevalecem as pequenas razões. A nossa época não é de grandes ideais, não existem grandes chamas de entusiasmo. Contudo, em falando de valores democráticos e em liberdade e cidadania ativa, o importante é manter acesa a chama, por isso deveremos ocupar-nos em que o fósforo não se apague.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian