Antes do dia de reflexão

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É difícil fugir hoje ao tema das eleições. O meu otimismo anda escasso, seguindo o princípio gramsciano “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”. Sinto assim em relação às eleições que se vão desenrolar neste próximo domingo uma mescla de ceticismo (nada vai mudar) e de receio (pode mudar para pior).

Habituemo-nos de ora em diante a pensar que a nossa Constituição é de base parlamentar, que as opções partidárias se vêm a multiplicar e que, neste sistema, a arte dos compromissos e das alianças se sobrepõe necessariamente ao poder absoluto de uma maioria incontestável. Temos também a ameaça da extrema direita, a que julgávamos ter ficado imunes com os quarenta e oito anos de ditadura, mas que regressa a nós com as suas caraterísticas de sempre. O fascismo muda de pele, como as serpentes, mas o seu veneno não muda. E a inexistência de maiorias claras desfavorece qualquer espírito reformista (de direita como de esquerda) e contribui para reforçar os inimigos da Democracia.

Uma esquerda democrática (em que mesmo o PCP e o Bloco acabaram por se transformar), uma direita democrática e uma extrema direita resolutamente anti democrática enfrentam-se nestas eleições.

Tenho, obviamente, um partido escolhido, naturalmente um partido democrático, e apoio o candidato a primeiro ministro que esse partido propõe.

Mas gostaria de apoiar as ideias, bem diferenciadas e claras, do partido que escolhi, antes de avaliar a figura do candidato a chefiar o governo. O presidencialismo de primeiro ministro nunca me convenceu, do mesmo modo que o presidencialismo em geral.

Nada tenho nada, mesmo nada, contra o meu candidato a primeiro ministro, que julgo preencher todas as qualidades requeridas para o lugar: ouvindo-o, sinto que partilha sem reservas as ideias e ideais que me fazem votar nesse partido e não noutro. Mas é preciso pôr tanto e tão insistentemente o acento na pessoa e nas suas virtudes e defeitos, graças e brincadeiras, mais do que nas diferenças de ideias e programas que se jogam nestas eleições?

Sem desrespeitar o alcance da voz de Portugal no mundo, admito que não me abalou muito não ouvir dos candidatos ideias originais sobre a guerra na Ucrânia, questão sobre a qual os nossos compromissos são claros, tendo, pelo contrário, ficado satisfeito com as posições claras quanto à Palestina assumidas por vários candidatos, incluindo o meu. Mas não ouvi discutir ideias sobre o futuro da economia global pós-Trump e o futuro da nossa economia nesse contexto. Temos estratégias para a nossa economia?

Gostaria de ter ouvido mais debate de ideias sobre o nosso modelo de sociedade (Estado Social ou Estado liberal?), de economia (país de serviços e turismo ou país com real capacidade produtiva de acrescentar valor ao que pode exportar?), bem como mais projetos e propostas concretos e definidos, em resposta às grandes angústias da vida dos eleitores (saúde, educação, poder de compra).

Gostaria que a educação, que ou nos digitaliza e robotiza ou não, e a cultura (sempre a parte de silêncio destas campanhas) tivessem sido objeto de debate, que nos permitisse averiguar a existência ou não de uma verdadeira defesa da cultura humanista e não dominada por algoritmos, como única forma de defender as nossas liberdades e as nossas capacidades críticas e, já que até a calendarizaram, de verdadeira reflexão.

Ainda temos dois dias antes desse dia de reclusão monástica das nossas ideias a que costuma chamar-se “dia de reflexão”.

Terei alguma surpresa agradável nestes dois dias?

Diplomata e escritor

Diário de Notícias
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