A ignorância é a mãe de todos os preconceitos - 2

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O caló português ou lusitano é a língua falada pelos ciganos portugueses no seio das suas comunidades ou quando não querem ser compreendidos, funcionando assim como uma gíria. Constitui uma variedade específica do caló ibérico ou para-romani, língua de mistura que conta com variedades específicas catalã, espanhola, galega e brasileira. Sobre o caló português parece ter-se abatido um manto de silêncio e escuridão - e.g., a nível nacional, a Porbase devolve 16 resultados para "calo", escritos em português e publicados em Portugal, dos quais apenas um é sobre o caló; os RCAAP (Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal) devolvem sete resultados para "caló+cigano", seis deles brasileiros; a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, ed. Século XXI, não inclui sequer entrada para "caló"; a nível internacional, e.g. o termo não consta do atlas das línguas em perigo da UNESCO, na Glottolog aparece a entrada "caló português" como hipónimo de "caló", mas sem nenhuma outra informação; a OLAC remete para o The Ethnologue (de acesso pago), que situa o caló apenas em Espanha.

Aquando da introdução do Português Língua Não Materna no currículo (2006-2007), ter-se-á questionado se os alunos ciganos portugueses deveriam ser inscritos nesta disciplina, acredito que por se considerar a possibilidade de a língua portuguesa ser para eles uma segunda língua. Terá sido neste contexto publicado um artigo intitulado "Os gajos não falam calão. O que falam os portugueses ciganos então?" (P. F. Pinto, 2008, Palavras, n.º 34), muito completo e bem documentado, leitura obrigatória para quem se interesse por estas questões, disponível nos RCAAP. Além de apresentar uma boa síntese da história do caló ibérico, descreve algumas características do português falado pelos alunos ciganos e defende a manutenção da inscrição destes alunos na disciplina de Português (língua materna).

A invisibilidade do caló português impressiona, sobretudo quando comparada com as diferentes variedades do caló de Espanha, para as quais se encontra significativa bibliografia disponível, apesar de ser comum a ideia de que o caló estará agonizante, e.g. a avaliar por diversos artigos publicados na revista Romani Studies (Univ. de Liverpool), onde não ocorre um único artigo sobre o caló português.

O caló português provavelmente não se encontra ainda extinto, mas estará seguramente em situação de grande vulnerabilidade. Não é difícil acreditar que as razões para tal sejam externas, a saber, a repressão do seu uso e a discriminação exercida sobre os ciganos, nomeadamente por autoridades do nosso país, em diferentes épocas. O mais extraordinário, porém, é perceber que esta invisibilidade é promovida pela comunidade cigana, ou por alguns dos seus representantes, como forma de preservação da sua identidade. É esta a conclusão a retirar da polémica reportada no artigo "Para que ninguém entenda o caló", assinado por Leonete Botelho (Público, 23/10/2000).

Não me deterei sobre os efeitos perversos da recusa de integração e do secretismo à volta da língua e da cultura sobre a comunidade cigana; disso falarão outros com mais propriedade. Uma língua como o caló, ainda por cima ágrafa, que não é falada nem conhecida, tem a morte e o esquecimento como destino certo. Poderá alguém querer que do caló português o único vestígio venha a ser o calão, esse registo linguístico que a sociedade rejeita por considerar vulgar, grosseiro, rude e até obsceno?

Sim, a ignorância é mesmo a mãe de todos os preconceitos.


Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa

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