Amigos improváveis

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Em 1989, quando Jorge Sampaio é eleito presidente da Câmara de Lisboa, reúne com um jovem quadro da autarquia, dirigente do CDS, oriundo dos tempos de Abecassis, que fizera uma feroz campanha contra a sua aliança de esquerdas. Apelidara-o de criptocomunista para cima; ou, no ponto de vista democrata-cristão, para baixo. A reunião, todavia, não corre mal. Sampaio era republicano, progressista e ateu. O interlocutor era monárquico, conservador e católico, com idade para ser seu filho. Acordaram, cavalheirescamente, por de parte a ferocidade do combate político. Trabalhariam juntos os 17 anos seguintes. O nome do centrista era Alberto Laplaine Guimarães, encarregado das relações internacionais do município na altura, assessor de Sampaio em Belém, secretário do seu Conselho de Estado. É a única pessoa que Sampaio leva dos Paços do Concelho para a Presidência da República. As divergências, no que a ideologia diz respeito, prevaleceram. Mas além destas ‒ e acima destas ‒ despontou uma amizade.

"Um humanista, um institucionalista e, especialmente, um amigo" é como o descreve. "A sua vida institucional, ao serviço do Estado, é incontestável, tanto à esquerda como à direita", considera. Laplaine Guimarães não esquece o momento de clivagem que foi a dissolução da Assembleia da República em 2005, portadora de uma maioria apoiante de um governo que o seu próprio partido integrava, mas lembra que Sampaio não enfrentou só o centro-direita em governação, mas também o Partido Socialista na oposição, não convocando eleições quando o seu camarada de décadas, Eduardo Ferro Rodrigues, liderava o PS. Laplaine assistiu a tudo isso bem de perto, incluindo o Conselho de Estado onde se discutiu a queda de Pedro Santana Lopes.

Guarda e não esquece, em particular, episódios da transição de Sampaio de edil para chefe de Estado. A chamada "operação Falcon", nome de código entre os seus mais próximos para descrever o projeto presidencial, nasceu de um atraso no trânsito de Paris. Em 1995, numa das suas viagens enquanto autarca europeu, Sampaio apercebe-se de que vai mesmo perder o avião. Um dos assessores sugere que se telefone para a TAP, pedindo que se mande atrasar a descolagem. Sampaio recusa terminantemente. Laplaine brinca que com um Falcon à espera talvez fosse mais fácil. Sampaio, humorado, responde à provocação: "Tratem lá disso então". E, de facto, um ano depois, trataram.

No mundo partidário, a travessia entre cargos também reúne peripécias. Quando Cavaco Silva assume a sua primeira candidatura a Belém, o CDS, ainda de Monteiro, hesita em apoiar o ex-primeiro-ministro. Não só por nunca ter feito parte dos seus governos, mas pela forte veia anti-cavaquista de alguns dos seus protagonistas. Laplaine, que havia declarado apoio público a Sampaio num artigo publicado neste jornal, organiza um jantar em sua casa com Manuel Monteiro, António Costa e Jorge Sampaio. Desse jantar saiu a liberdade de voto dos militantes do CDS para essas presidenciais. Monteiro não apoiaria ninguém.

O episódio talvez mais simbólico e menos conhecido é o da audiência de Sampaio no Vaticano, com João Paulo II. Se os Papas não recebem presidentes de Câmara, Sampaio foi convidado como presidente de uma das organizações internacionais dedicadas à política local. No momento em que entraram no gabinete do Papa, com autorização apenas para duas pessoas, Sampaio fez questão de levar consigo Laplaine Guimarães, conhecendo a sua fé.

Um gesto de amizade e, sobretudo, de um homem bom.

Colunista

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