Amava sobretudo a liberdade

António Alçada Baptista era um contador de histórias inesgotável. E a amizade era fecunda fonte de contentamento. Era absolutamente extraordinário ouvi-lo, fruto de uma memória prodigiosa, que manteve pela vida fora e que lhe permitia fixar pormenores, sinais e sentidos. Era a lembrança viva de quem amava sobretudo a liberdade. Recordo o entusiasmo com que partilhava episódios como o do padre Anchieta sobre uma viagem no sertão brasileiro. Com urgência em regressar a uma aldeia recôndita, o jesuíta pediu aos carregadores rapidez na caminhada. Contudo a andança era muito longa e, na terceira jornada, os índios pararam inesperadamente. O padre indagou sobre o motivo da interrupção e a explicação não se fez esperar: "Temos vindo depressa de mais e a nossa alma ficou lá para trás. Temos de esperar que ela regresse, pois sem ela não podemos continuar."

Com Jorge Luis Borges, quando este veio a Lisboa, "Os Teólogos" de O Aleph animaram a conversa. Era uma boa metáfora para um tempo de tantas incompreensões. Aureliano e João de Panónia andaram a vida inteira a guerrear-se. E chegou o momento de o ortodoxo e o herege se encontrarem perante Deus no juízo final. Aureliano parecia certo da sua vantagem como merecedor do paraíso eterno. Mas percebeu uma estranha frieza no decorrer desse supremo encontro. E sobretudo estranhou por estar a ser interrogado ao mesmo tempo do seu eterno adversário - que, por ironia do destino, morrera no mesmo dia e à mesma hora. Afinal, os dois teólogos - o aborrecedor e o aborrecido, o acusador e a vítima - eram uma e a mesma pessoa e o veredicto seria comum para ambos, o que mudou radicalmente esse derradeiro diálogo... A filosofia da gente simples surpreendia-o positivamente. Um dia uma senhora na Rua do Loreto perguntou-lhe onde ficava uma rua pouco conhecida do Bairro Alto. António explicou da melhor maneira que sabia. E a senhora ficou muito agradecida. Olhando-o serenamente, apenas disse "todos sabem tudo, cada um sabe o que sabe".

E não resisto a um episódio que me contou, passado com a censura, quando dirigia a revista O Tempo e o Modo. Em 1964, Sophia de Mello Breyner traduziu de um modo sublime o Hamlet, de Shakespeare. A versão é uma obra-prima da língua portuguesa. O António considerou dever publicar um excerto na revista. Mas era necessário enviar as provas tipográficas à Comissão de Censura. Apesar de a revista ser das mais martirizadas pela censura (tendo sofrido a proibição de cerca de metade dos textos que, entre 1963 e 1969, foram a exame), ele achou que naquele caso não haveria problemas de maior. Enganou-se, porém. O texto de Sophia veio totalmente cortado. António Alçada ficou incrédulo. Afinal, era um texto clássico do século XVII. Pegou no telefone e falou ao coronel dos serviços de censura. Eram coronéis reformados que normalmente estavam encarregados dessa triste tarefa... Do lado de lá, o censor confirmou o corte total e António, com uma infinita paciência, explicou o absurdo da situação. No entanto, o inabalável coronel insistia. Era assim, e pronto, não havia volta a dar... E lá veio a justificação. A alusão no diálogo a um Marcelo, certamente teria razão perversa. Falava-se então muito da sucessão de Salazar, e o nome que já circulava era o de Marcelo Caetano... O censor estava certo de que havia nessa referência uma ardilosa intenção política... Não se conformou, porém, António Alçada - e, palavra puxa palavra, acabou por conseguir um corte parcial... A fala de Horácio no I Ato, depois de um galo cantar, terminava assim: "O fantasma avança. Para-o! Fá-lo parar Marcelo!" E foi esta a única frase proibida. Passados dias, Alçada Baptista encontrou Marcelo Caetano e contou-lhe a história. Resposta: "Sabe, isto é o mal de a gente ter um nome que vem dos clássicos"...

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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