Algumas inquietações reais e virtuais
Eis um título oportuno e sugestivo: "A Inteligência Artificial e a Criação Artística - Para onde Vamos?". Trata-se de um ciclo de filmes proposto pelo LEFFEST, com alguns eventos paralelos (incluindo uma conversa com Laurie Anderson e Gina Gershon no Teatro Tivoli BBVA, dia 18, 18.00). O tema agregador tem tanto de atual como de didático. Como se escreve nas notas do programa do festival, procura-se refletir "sobre a fratura que hoje existe no mundo artístico face ao uso da Inteligência Artificial e da possibilidade de que esta se transforme numa alternativa à criação humana, à custa de um empobrecimento do pensamento humano". Aliás, a possibilidade dessa alternativa marcou as recentes greves que abalaram o sistema industrial de Hollywood, já que imaginar a produção de filmes com a manipulação de imagens arquivadas de atores deixou de ser uma hipótese de ficção científica.
O didatismo envolve, aqui, a preocupação de não ceder ao turbilhão mediático em que vivemos, ou somos obrigados a viver. Assim, em termos cinematográficos, importa saber que as euforias, dramas e tragédias da convivência de homens e máquinas não começaram com a atual agitação "informativa" e revisitar títulos emblemáticos como Metropolis (1927), de Fritz Lang, Frankenstein (1931), de James Whale, ou ainda essa pequena pérola da filmografia de Rainer Werner Fassbinder que é O Mundo no Arame (1973). Sem esquecer, claro, as presenças "obrigatórias" de 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, e A.I. - Inteligência Artificial (2001), de Steven Spielberg.
Importa também relativizar tudo isto, na certeza de que "relativizar" não é sinónimo de "minimizar", mas sim prestar atenção às especificidades dos contextos históricos. Assim, nas cronologias das enciclopédias ficamos a saber que, em 1642, o matemático e filósofo francês Blaise Pascal inventou a primeira máquina calculadora, inaugurando um capítulo fundamental daquilo que agora conhecemos, e reconhecemos, como Inteligência Artificial (IA).
Quase quatro séculos depois, as coisas mudaram, por vezes parecendo que estamos perante um assunto nascido espontaneamente há meia dúzia de meses, de tal modo que, em alguns discursos, a IA passou a ser descrita como o demónio que é preciso queimar na praça pública.
Há em tudo isto muito de amargo e deprimente, sobretudo porque reconhecer os disparates "militantes" que estão na moda não é o mesmo que recusar enfrentar a gravidade e complexidade dos factos e hipóteses que estão em jogo. As muitas e, por vezes, muito subtis ameaças de desumanização que a IA contém são mesmo reais - ou, é caso para dizer, virtuais. Em 2001: Odisseia no Espaço, por exemplo, o lendário confronto do astronauta David Bowman (Keir Dullea) com o computador HAL 9000 é tanto mais inquietante quanto aquilo que começa como um jogo de insólita sedução se vai transfigurando numa radical disputa de poder.
As ramificações dos problemas que assim vamos descobrindo são infinitas, aconselhando, uma vez mais, a que não cedamos a generalizações apressadas. No ciclo está também o emblemático Matrix (1999), de Lana Wachowski e Lilly Wachowski, demonstrando por A+B que a relação dos humanos com os computadores está longe de ser uma mera questão operacional, já que implica toda uma reconversão, material e mental, dos circuitos de perceção e conhecimento.
Lembremos, por isso, dois outros títulos programados pelo LEFFEST que nem sempre terão sido devidamente acompanhados no momento da sua estreia: Her - Uma História de Amor (2013), de Spike Jonze, e Ex Machina (2014), de Alex Garland. No primeiro, Joaquin Phoenix estabelece uma relação amorosa com um programa de computador, num mundo de saturação de telemóveis e afins que, dez anos depois, surge como totalmente realista.
No segundo, a relação entre Caleb, um programador (Domhnall Gleeson), e Ava, uma mulher-andróide (Alicia Vikander), parece espelhar a herança trágica de Romeu e Julieta; com a particularidade de a companhia que criou Ava se chamar Blue Book, expressão que, historicamente, tem tido as mais diversas aplicações, do livro de notas (1933-34) do filósofo austríaco Ludwig Wittengstein ao projeto de investigação dos OVNI desenvolvido pelo Exército dos EUA ao longo das décadas de 1950/60... Decididamente, as coisas complicam-se.
Jornalista