Algum sentido de decência

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O despacho do senhor juiz desembargador onde se afirma que o processo marquês não pode ser transformado numa "interminável rotação de requerimentos / reclamações/ decisões / recursos ", acaba de ser citado na SIC e no Correio da Manhã. Assim sendo, talvez esta seja a ocasião para pôr certos pontos nos is. Em primeiro lugar, devo lembrar que o processo teve quase um ano de prisão, cinco de investigação e três de instrução. Num total de oito anos. Em 2017 apresentei uma ação administrativa contra o Estado por incumprimento dos prazos de inquérito e por violação do segredo de justiça. O Tribunal aceitou o processo, mas ainda não houve nenhuma sessão de julgamento - vai para cinco anos.

Percebo bem que se está a iniciar um novo capítulo da história contada sobre o processo e talvez por isso seja necessário responder imediatamente. Quem tem memória destes sete anos sabe que a regra foi o abuso e a arbitrariedade. A detenção foi transformada em espetáculo e a prisão usada para humilhar. Os prazos de inquérito foram escandalosamente violados. Um adiamento, depois outro e outro, e outro, e outro, e ainda outro. Seis no total. De um prazo máximo de dezoito meses passamos a cinquenta e dois. Cinquenta e dois meses sem acusação, mas com a infâmia espalhada nos jornais. Oito anos depois, o comentário do senhor juiz desembargador tenta transformar a vítima em responsável pela demora. Com o devido respeito, não ficará sem resposta.

O despacho diz respeito à reclamação que apresentei de uma decisão do senhor juiz. Esse direito é-me conferido pela lei e não impõe prévia consulta de oportunidade. O ponto é simples e é também de básica cultura democrática - quando não se concorda com uma decisão judicial devem ser usados os meios que a Constituição e a Lei colocam à disposição dos cidadãos, cujos direitos são o fundamento último do poder judicial democrático. Assim sendo, nunca me ocorreu que uma divergência de opiniões pudesse ser vista como insolência. Lamento a indisposição que causei, mas não costumo baixar a cabeça quando não concordo. E já passei por muito para ficar impressionado com frases deste tipo.
Mas talvez se justifique ir um pouco mais atrás. Primeiro ponto, a decisão instrutória considerou sem mérito e sem fundamento todas as monstruosas acusações que me fizeram durante sete anos. Todas. A mentira de Vale do Lobo, a mentira da Parque Escolar, a mentira da Opa da Sonae, a mentira da diplomacia económica com a Venezuela, a mentira do TGV, a mentira da proximidade a Ricardo Salgado, a mentira da fortuna escondida. Nada ficou de pé. E por favor parem com a conversa ridícula sobre juízes mais ou menos sensíveis a provas indiretas. A fase de instrução tem a ver com indícios, e quando é dito que estes não existem, isso quer dizer que não há provas, nem diretas nem indiretas. Neste caso, aliás, há mais do que isso - há contra-indícios, isto é, provas que contradizem expressamente as alegações feitas. Bastaria lê-las, se alguém se interessasse por ler em vez de se dedicar à patética competição pelos títulos jornalísticos relativos ao número de páginas.

Na sua decisão, o juiz de instrução desconstruiu metodicamente a chamada "narrativa investigatória" dos procuradores, mas não resistiu a criar a sua própria. O testa-de-ferro passou a corruptor e os crimes passaram a ser outros, dos quais nunca tive oportunidade de me defender. O resultado é absolutamente extraordinário: as duas partes, defesa e acusação, consideram que o juiz procedeu a uma "alteração substancial de factos". Assim estamos quanto à pronúncia - com recursos interpostos de ambos os lados e com o Ministério Público a afirmar que tal pronúncia é "insustentável em julgamento".
Acontece também que o juiz de instrução decidiu enviar o processo para o tribunal de julgamento e o tribunal de julgamento decidiu devolvê-lo ao tribunal de instrução alegando incompetência. O juiz de instrução não concordou e ordenou, de novo, o seu reenvio para tribunal de julgamento. Deste "vai e volta" resultou o que se chama de "conflito negativo de competências", que deverá ser resolvido pelo tribunal superior. Nada disto tem a ver com qualquer iniciativa da defesa. E, embora não tenhamos ficado agradados, nunca nos ocorreu rotular este episódio como "rotação interminável de recusa de competências".

No entanto, a senhora magistrada do tribunal de julgamento resolveu ir mais além. Não só recusou a competência sobre o processo, como decidiu também separá-lo em dois - um que respeita à decisão de pronúncia; o outro que respeita à decisão de não pronúncia. Esta decisão é totalmente ilegal - só há uma decisão instrutória, não duas. Para além disso, a forma como o fez é também extraordinária: extraiu uma certidão, criou um novo processo e atribuiu-se a si própria a competência para o julgar. Esta decisão foi validada pelo senhor juiz desembargador e foi desta decisão que reclamei. E é esta reclamação que motivou o comentário de "interminável rotação".

Entendamo-nos bem quanto à reclamação em causa. Não concordo com a separação de um processo feito por quem não tem competência para o fazer (só o juiz de instrução o poderia fazer e não o fez). Não concordo com uma separação de processos feita com base numa certidão e sem cumprir as normas processuais exigíveis. Também não aceito que decisões como a que o senhor juiz tomou sejam adotadas sem que todos os interessados sejam notificados e consultados para poderem dar a sua opinião. A isso se chama de contraditório, princípio constitucional da maior importância.
Eis, portanto, ao que chegámos. Reclamar de uma decisão judicial é agora visto como um transtorno que causa muita maçada ao sistema judicial e não como o exercício normal de um direito constitucional. Acontece que neste caso a nossa discordância é tão profunda e os procedimentos tão escandalosamente inconstitucionais que, sem pedir licença a ninguém para o fazer, desejo usar o meu direito a discutir esta matéria noutra corte que só pode ser o tribunal constitucional. E pretendo fazê-lo sem processo de intenções, como se estivesse a agir com qualquer tipo de reserva mental. Se ainda restar algures algum sentido de decência.


Ex-primeiro ministro

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