Alguém que defenda a Europa
Há cinco anos, no primeiro destes artigos, sugeri que valia a pena fazerem-se 27 referendos sobre a Europa. Agora, não é preciso.
Depois do Brexit e com a pressão dos populistas por todo o lado, mas também dos resgates das troikas, parecia arriscado mas teria sido importante obrigar os líderes nacionais a dizer com clareza que a Europa fazia falta e fazia mais bem que mal. Cinco anos passados, o tempo encarregou-se de fazer esse referendo, provando a importância da União Europeia.
Durante a pandemia, depois das falhas iniciais (precisamente, até, por causa das falhas iniciais), e agora, durante a guerra (precisamente porque a ambição europeia da Ucrânia é um facto fundamental da agressão russa), a Europa foi manifestamente útil aos europeus.
É evidente que tivemos melhor e mais rápido acesso a máscaras, vacinas e conhecimento sobre a doença. Podia, evidentemente, ter sido muito melhor. Mas não foi a União Europeia que o impediu. Pelo contrário.
E agora, durante a guerra, o mesmo. A União Europeia deu dimensão e impacto a respostas que, fora da UE, teriam um alcance limitado. Os países da Europa Central e de Leste, os Bálticos e os Nórdicos, têm conseguido puxar a União Europeia para uma reacção até agora comum e, mais importante, veemente. Com certeza que a pressão americana, a realidade e, muito, a comunicação ucraniana, têm sido fundamentais. Mas se a Polónia, a Estónia, a Letónia e a Lituânia não fossem membros da União Europeia, a atitude do resto da Europa teria, muito provavelmente, sido outra.
Precisamente por isso, a guerra provou o que um referendo permitiria argumentar. De Helsínquia a Lisboa, na sua maioria os europeus perceberam que a agressividade russa é uma ameaça à Europa, e que importa reagir em conjunto. Putin fez mais pela ideia de fronteiras externas da União Europeia do que milhares de discursos e teses.
E agora?
O que se está a passar é uma oportunidade para exibir a importância da União Europeia. Em vez disso, alguns líderes e políticos europeus acham que é tempo de mudar as regras e o Tratado, e referendar isso tudo. Uma ideia errada e arriscada.
As regras que Macron, Draghi, Verhofstadt e muitos (demasiados) deputados europeus pretendem alterar não fazem nada pelo sentimento de pertença à União Europeia, mas criam confusão e rejeição. Listas transnacionais e eleição semi-directa da presidência da Comissão promovem um equívoco (para não dizer uma fraude). Uns deputados serão mais europeus que outros, a lista transeuropeia vitoriosa pode não ser a que tem mais deputados no parlamento e, sobretudo, só quem preside à Comissão terá essa suposta legitimidade mais democrática. Da mesma maneira que pedir direito de iniciativa para o Parlamento Europeu (e para o Conselho, não? Porquê?) é desvalorizar o facto de que os deputados europeus já têm muito poder. Mais que a maioria dos seus congéneres nacionais. Participam na maioria dosprocessos legislativos, coisa rara, por exemplo, em Portugal.
Há três coisas que a defesa da União Europeia devia perceber. Primeiro, que ser europeísta não é um exclusivo dos federalistas. Segundo, que o compromisso, o expoente do "método comunitário", é muito mais importante que vencera opinião adversária. Terceiro, que a União Europeia é instrumental. Para a maioria dos povos e Estados membros, a União Europeia não é uma utopia ou grande sonho. É um instrumento político. É por isso que não deve ser capturada por uma ideologia. As regras devem permitir a todos jogar.
Se insistirem em referendar uma visão federalista da União Europeia, muito provavelmente vão perder, criando uma crise desnecessária e perigosa. Exactamente quando a Europa podia ser quase consensual.
PS: Por vontade própria, termina hoje esta colaboração com o Diário de Notícias. Durante mais de cinco anos escrevi em liberdade sobre a Europa e não só. Obrigado a todos, dos leitores aos paginadores, editores e directores. Foi uma honra e, sei-o bem, um privilégio escrever neste jornal.