Algo tem de mudar

Publicado a

1- É sabido que historicamente as federações desportivas recebem financiamento do Estado para as suas actividades por via de contratos programa que celebram anualmente com o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). A este veio juntar-se um novo canal de financiamento resultante de legislação aprovada no final do governo de Passos Coelho, com a legalização das chamadas apostas desportivas online e Placard.

Em termos de financiamento público das federações desportivas, são estes os meios que o Estado disponibiliza e, quando assim acontece, deve pressupor-se que o faz em condições de justiça e equilíbrio, promovendo princípios de solidariedade. Ora, não é isto que acontece!

A verdade é que a distribuição pelo IPDJ de pouco mais de 30 milhões de € em 2024 obedeceu a critérios definidos e conhecidos que garantem o apoio à universalidade do movimento desportivo, ou seja, às mais de 60 federações de todas as modalidades. A distribuição das receitas dos jogos online, por exemplo, não obedece aos mesmos critérios mas apenas às orientações adoptadas nas leis de 2015 e, em consequência, os 62 milhões da sua receita em 2024 foram parar na sua quase totalidade aos cofres de 3 ou 4 federações (mais de 95% do total das receitas).

Ora, esta situação (que dura há cerca de 10 anos) não pode continuar, sob pena de acentuar um fosso inaceitável de meios e condições de financiamento e de trabalho entre as mais de 60 federações e essas 4 ou 5 brindadas com uma legislação que as beneficia. Esta tendência é ainda agravada pelo aumento progressivo destas receitas que, de 2023 para 2024, se cifrou em 22% (de 51 para 62 milhões).

2 - Precisamente, uma das matérias que animou a recente campanha para a eleição do Comité Olímpico de Portugal foi o financiamento público do sistema desportivo, particularmente das federações desportivas. Na verdade, estamos perante uma realidade que deixou de poder estar “escondida” para passar a ser um tema de discussão e principalmente um problema a solucionar por quem tem a obrigação de o fazer, desde logo o Governo.

Ainda que o faça a contragosto, vai ter de assumir alterações nesta matéria, o que nunca imaginou fazer, tanto mais que perturba necessariamente parceiros e poderes que prefere sempre ver a seu lado. Aliás, basta reler uma entrevista do actual Secretário de Estado do Desporto (17/10 ao jornal Record) para perceber que nem sequer queria falar do assunto. Sobre o jogo online diz: “Legalizámos esta situação no país em 2015, era nessa altura que deveríamos ter olhado para este tema.” E a seguir afirma que “as apostas desportivas têm subjacentes direitos desportivos”, acrescentando um conjunto de argumentos de ocasião para não aceitar qualquer revisão das leis.

Entretanto, algo foi mudando. E quem nunca se incomodou com a injustiça e desequilíbrio na distribuição pelo desporto destas receitas e se manteve em defesa da sua legislação, percebeu que já não podia mais esconder, e vem procurando encontrar uma saída. Percebe-se que tenham “acordado” para a injustiça com 10 anos de atraso e que do “Não” de Outubro se tenha passado para um “Sim, talvez” a uma possível alteração legislativa. Coincidem, aliás, no tempo e na forma, declarações nesse sentido de Luís Montenegro, Pedro Duarte, Fernando Gomes e até mesmo de Pedro Dias.

Houve um processo eleitoral que os despertou, claramente! Só que nenhuma das suas declarações aponta para uma reflexão séria e justa que conduza a novos critérios de distribuição, mas estas antes revelam uma precaução que significa simplesmente não diminuir as receitas dos que mais recebem e prepara o ‘prato de lentilhas’ para ‘calar’ os que nada recebem. E estarão todos de acordo em chamar-lhe, hipocritamente (não há outro termo para descrever esta atitude), fundo de solidariedade. Prossiga o banquete mas providencie-se a sopa dos pobres?

Giuseppe Tomasi de Lampedusa, na sua obra “O Leopardo”, dizia que “algo tem de mudar para continuar tudo na mesma”. É este o caminho que serve o desenvolvimento e a representação do desporto português? Por mim não, mas eu não mando nada!

* Ex-secretário de Estado do Desporto e da Juventude e Ex-candidato à presidência do Comité Olímpico de Portugal

Diário de Notícias
www.dn.pt