Algo está podre no reino das eleições

Publicado a
Atualizado a

O que se passou este mês na votação das comunidades não atingiu proporções de escandaleira por inconveniência partidária e desinteresse jornalístico. Caso o Tribunal Constitucional não tivesse decidido repetir a eleição do círculo da Europa, o episódio teria beneficiado de uma indiferença ainda maior. Se num país civicamente ativo os vários capítulos da novela teriam provocado choque, revolta e escrutínio, por cá pouco ou nada aconteceu. Por mais versões da história que haja, e bastante contrainformação e amadorismo nela envolvidos, não há forma de interpretar o sucedido sem uma profunda tristeza pelo desrespeito com que o ato eleitoral foi tratado pela maioria. Infortunadamente, as várias instituições do regime democrático não se mostraram minimamente merecedoras da democracia que este representa ‒ e que algumas delas fundaram.

Em 2019, a votação das comunidades foi pela primeira vez assolada pelo recenseamento automático, que fez disparar o número de eleitores e que confrontou a contagem de votos com obrigações legais pouco amigas da sua realidade. A obrigatoriedade de uma fotocópia do cartão de cidadão anexa ao voto contrastava com as tecnologias que fiscalizam a contagem por correspondência ‒ um código de barras que identifica imediatamente o eleitor através da morada e prejudicava a participação eleitoral, visto que uma larga percentagem dos votantes não cumpria com a dita fotocópia, cumprindo com tudo o resto. A Comissão Nacional de Eleições deliberou, posteriormente, que essa obrigatoriedade era "apenas um reforço das de si fracas garantias do exercício pessoal do voto", não sendo "um elemento obrigatório para a validade do boletim", e inseriu-o no manual dos membros das mesas eleitorais.

Em 2022, com base nisso e não tendo a obrigatoriedade sido removida da lei, a secretaria do ministério da Administração Interna reuniu com os partidos que, de forma unânime, acordaram que a ausência da cópia de identificação não anularia votos nos círculos da emigração. O PSD, independentemente de ter participado na reunião com os seus delegados e mandatários, mudaria depois de posição quanto ao círculo da Europa (que perdeu) mas não quanto ao fora da Europa (que venceu), protestando nas mesas de contagem (que misteriosamente não separaram os votos cumpridores dos incumpridores, como deviam) e na mesa de apuramento (ironicamente presidida por um membro da CNE), que anularia assim os 157 mil votos misturados. No círculo fora da Europa, onde ninguém protestou, tudo se aceitou e nada se cumpriu, sendo a mesa de apuramento presidida por um assessor do secretário de Estado da Administração Interna.

Rui Rio, na originalidade que o caracteriza, apresentou uma queixa-crime no Ministério Público contra as mesas do círculo da Europa, processando, também ironicamente, dezenas de militantes do PSD que deram o seu tempo e cara para escrutinarem um ato eleitoral a seu convite. Um pequeno e pouco conhecido partido chamado Volt, por sua vez, entregou um requerimento no Tribunal Constitucional contra a anulação dos 80% da votação do círculo, conseguindo, com sucesso, que a eleição se repita.
Em resposta à decisão, sem a mais remota autoridade para o fazer, a Comissão Nacional de Eleições veio contradizer o TC quanto à data da repetição e quanto ao número de mesas que repetirão o ato eleitoral. Numa cinematográfica conferência de imprensa, a CNE informou o país que era afinal a favor da obrigatoriedade da tal fotocópia do cartão de cidadão (apesar de ter deliberado a favor da sua indiferença) e que fez de tudo para informar os eleitores das comunidades sobre isso, mas que nada tem a ver com o seu incumprimento, com o acordo entre os partidos para ignorarem a lei eleitoral (como a própria CNE previamente opinara) ou com o facto de os dois círculos da emigração terem apurado a eleição com critérios diferentes. Se ninguém protestar, diz a CNE, não importa se legal ou ilegal, "fica consolidado para sempre". Ficámos a saber, portanto, que se a pata de um gatinho borrar o boletim de um português no estrangeiro, a mesa o tomar como um voto no PAN e nenhum partido reclamar, nada acontece: é o gatinho que vota.

A vergonha, essa, está mais do que consolidada


Colunista

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt