Alegria de abril

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Contra todas as evidências em contrário – a alegria

(Manuel Gusmão)

Todos os anos descemos juntos a Avenida da Liberdade e todos os anos reafirmamos nesta união de vontades o que nos dizia aquela velha canção: “Somos livres, somos livres/ não voltaremos atrás”. 

Este ano, os que querem voltar atrás assumiram a provocação e a ação violenta como suas formas naturais de expressão: tornaram-se assim um mero caso de polícia. 

Gostei de desfilar este ano com a minha associação sindical, a Associação dos Diplomatas Portugueses, que desfilou quase no fim do cortejo, seguida pelos manifestantes da Iniciativa Liberal, que connosco rejeitaram o fascismo, embora não saibam que nunca houve verdadeiramente comunismo em Portugal. 

A verdade é que, contra quem pensa que os jovens são indiferentes à política, a juventude apareceu em força e em grande número nesta manifestação. Mais por causas do que por ideologias, como sugere Pacheco Pereira? Mais inclinada para partidos como o Livre e a Iniciativa Liberal do que para os dois principais partidos do nosso sistema político, como se diz? Não sei. Eu conheço um pouco a juventude do partido a que pertenço e o que conheço desmente de todo a ideia que se fez corrente de uns jotas acéfalos, movidos apenas pela ambição. Os partidos políticos, com todas as suas vulnerabilidades, são indispensáveis à democracia, têm é que saber renovar-se e entender os problemas do nosso tempo, para ir verdadeiramente ao encontro daqueles que se sentem vencidos pela História e esquecidos pelo presente. 

Nós, os Diplomatas pela Democracia, lá no fim do cortejo, esperámos horas, como todos, até começarmos a andar. Constou-nos que estávamos à espera que um bando de delinquentes fosse dispersado no Rossio. Lembrei-me do poema de Manuel Alegre “quando desembarcarmos no Rossio, canção” e pensei que há cinquenta e um anos que partilhávamos neste dia o privilégio de desembarcarmos todos no Rossio, ao som daquele poema e da canção a que deu origem.  

Dirão que vens de espada em riste/ e que foi sangue o vinho que pediste”, continua o poema. Os que pensam nos últimos 50 anos como uma era degradante de corrupção e decadência são os estranhos saudosistas de um Estado Novo que a maioria deles não conheceu, apenas usa como bandeira oportunista e enganadora. Esses ficaram em casa, não embarcaram nas aventuras dos delinquentes, mas o seu silêncio é uma feroz denegação da alegria de abril. 

Gostei de ver o PSD e a Iniciativa Liberal a manifestar. A Revolução de abril trouxe-nos a democracia e em democracia as ruas são de todos, de todos menos dos arruaceiros e dos provocadores. 

Alguns acharam que a festa de abril era incompatível com o pesar que sentimos pela morte do Papa Francisco. Estamos de luto, pensaram, e no luto não pode haver festa. 

Ocorreu-me a mim, velho agnóstico que sou, a ideia de que o verdadeiro luto pelo Papa Francisco estava afinal na alegria. Na alegria que ele próprio irradiava e na nossa profunda e inabalável alegria de abril. 

Porque, como a seu tempo nos ensinou Espinoza, só o afeto da alegria nos conduz a “uma potência maior de ser e agir no mundo”. Como foi e como sempre será abril. 

Diplomata e escritor

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