Ainda (e sempre) Otelo

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A minha avó materna, nascida em 1914, não tinha o que chamaríamos hoje de grande consciência política. Tinha algumas convicções, poucas e absolutamente seguras, que valem o que valem: a de que Salazar e Marcello Caetano eram simplesmente uns "cínicos", o que, para ela, significava que provavelmente pensavam uma coisa e diziam outra; e que Otelo e Jorge Sampaio eram as melhores pessoas que lhe tinham aparecido, no seu julgamento simultaneamente sábio e ingénuo, como figuras políticas depois do 25 de Abril. Várias vezes a ouvi, eu criança, provavelmente passeado por ela em direção ao Mercado de Campo de Ourique, elogiar Otelo - e estamos a falar de 1981, 82, 83. Tal como, depois, a via com imensa atenção às intervenções públicas, na televisão, de Jorge Sampaio.

Otelo tem desde logo uma característica rara. Bastava o seu primeiro nome. Em relação aos nossos atuais servidores públicos de topo, há diferenças. O "Costa" pode ser o primeiro-ministro, mas pode ser também o dono da oficina do bairro. O "Marcelo" pode ser este que está, mas pode ser também o anterior dono da cadeira do poder, tal como pode ser, para muitos dos mais novos, o Marcelo Twelve, youtuber brasileiro com 1,25 milhões de seguidores. O "Otelo", para nós, era o Otelo. Amado ou odiado, era o Otelo (como o Cunhal, o Soares ou o Eanes).

Depois de morto, é muito mais fácil ser herói. Otelo não terá sido sempre herói, pelo menos para todos. Mas provavelmente foi-o num período decisivo, para quem acredite que a queda da ditadura era fundamental e eram precisas pessoas sem medo para executar uns "detalhes"... - no caso, um golpe de Estado militar que anulasse um regime político com décadas de existência e viesse a permitir uma Constituição e um Estado efetivamente democráticos, descolonizadores e livres. E um herói, talvez estranhamente, que surge nesse momento como frio, eficaz e decente. Afinal, teria sido razoavelmente fácil mandar em 1974, então sim, fuzilar uns quantos (desde logo pides e afins, esses proscritos imediatos com os quais todos os regimes recém-democráticos têm tanta dificuldade em lidar: os delatores e torturadores que permanentemente vivem entre nós).

Tal nunca aconteceu. E é preciso procurar muito na história por revoluções sem sangue (a não ser as mortes, por desespero de uns quantos desgraçados do regime que finava e basicamente por medo físico, à porta da sede da PIDE), seja um sangue justiceiro, devido ou só injusto.

E, se gostamos do resultado final do 25 de Abril, houve pessoas concretas que o fizeram. E Otelo foi um deles, à cabeça.

Nunca conheci Otelo pessoalmente - e devo dizer que tenho pena disso. Por vezes, ao ouvir a canção Maluco Beleza, de Raul Seixas (do ano em que nasci, 1977), lembrei-me de Otelo, nem sei exatamente porquê. Talvez me pareça ser um epíteto que lhe cairia bem, na sua melhor versão imaginável, sem qualquer apoucamento ou menorização, antes pelo contrário:

"Esse caminho que eu mesmo escolhi,
É tão fácil seguir, por não ter onde ir."

À nossa volta, temos agora, como eventual futuro político feito de nomes, Pedro Nuno Santos, Ana Catarina Mendes, Jorge Moreira da Silva, Paulo Rangel, João Cotrim de Figueiredo, André Ventura, Catarina Martins, João Ferreira, etc., entre outros. Tantos nomes... Podem ser excelentes - ou nem por isso, consoante as convicções naturais e circunscritas de cada um de nós. Mas Otelos? Aqui não há nenhum. E esta amplitude de escolha deve-se em boa medida e graças: a ele.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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