Acesso, liberdade de escolha e complementaridade: um SNS (finalmente) mais próximo do cidadão
O acesso aos cuidados de saúde é, por vezes, um verdadeiro labirinto. Listas de espera, burocracia, ausência de soluções integradas e, até, pouca orientação para o Cidadão. Esse acesso é, todos os dias, também suportado e garantido por uma rede de milhares de prestadores convencionados que, agindo por conta do SNS e espalhados pelo território, atendem os Cidadãos e prestam-lhes os cuidados e os exames que o SNS prescreve, mas não consegue realizar com a proximidade ou rapidez necessárias. Um exemplo, em 2024 os Laboratórios associados da ANL atenderam mais de 14 milhões de utentes, dos quais mais de 7.5 milhões eram utentes do SNS, e tanto basta para perceber o quão irreal foram, e aqui e acolá ainda são, as teorias peregrinas da internalização das análises clínicas, que pretendiam obrigar os Cidadãos a fazerem as suas colheitas apenas nos estabelecimentos do SNS: para se manter o mesmo nível de acesso, tanto significaria que, de uma assentada, os estabelecimentos do SNS teriam de passar a ter de atender, pelo menos, mais 7.5 milhões de utentes por ano.
Como sabemos que isso simplesmente não é possível, fica claro que as políticas de internalização, sob uma alegada racionalização de utilização de meios do SNS, apenas resultam num aumento de gastos do próprio SNS – porque os atos realizados numa instituição do SNS são, por regra, mais caros do que quando realizados num convencionado –, ou numa limitação do acesso dos Cidadãos aos cuidados e exames que o próprio SNS prescreve. Normalmente, as duas!
Isto dito, é bom recordar que o art. 64.º da Constituição não estabelece, nem sequer propugna, que o acesso dos utentes do SNS se realize apenas através de instituições públicas. Muito pelo contrário, é constitucionalmente consagrado – ainda que muitos finjam que não sabem – que a Constituição impõe ao Estado o dever de articular as formas empresariais e privadas da medicina com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade. Convido, a quem tiver dúvidas, a ler a alínea d) do n.º 3 do art. 64.º da CRP, relativo às incumbências prioritárias – repito, incumbências prioritárias! – do Estado para assegurar o direito à proteção da saúde.
E é daqui que resulta a complementaridade do setor convencionado face ao SNS: as convenções em saúde visam “[…] com respeito pelos princípios da complementaridade, da liberdade de escolha, da transparência, da igualdade e da concorrência, assegurar a realização de prestações de serviços de saúde aos utentes do Serviço Nacional de Saúde, no âmbito da rede nacional de prestação de cuidados de saúde.” (cfr. o Decreto-Lei n.º 139/2013).
É por isso que defendo, e sempre defendi, que quando não se atualizam as tabelas dos atos convencionados, ou quando estas são diferentes da tabela do próprio SNS, na verdade está-se a descurar, para não dizer violar, o próprio direito constitucional de acesso. As convenções são uma forma de execução do nosso direito constitucional de acesso, e não apenas um “apêndice” do SNS, que pudesse ficar cronicamente por atualizar os seus atos e preços (administrativa e unilateralmente fixados pelo Estado!) durante 12, 14 ou 16 anos … mas são contas para outro rosário!
Aqui e agora quero saudar o Ministério da Saúde e os SPMS. A entrada em vigor, a 1 de julho, da nova fase de execução do Despacho n.º 12876-C/2024 marca um momento decisivo, e pela primeira vez, qualquer utente do SNS pode, com um clique, escolher livremente realizar os seus Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica (MCDT) numa entidade convencionada. Esta mudança não é apenas administrativa: representa o reconhecimento prático de que a saúde pública deve estar organizada em função do cidadão, não o contrário.
A complementaridade do setor convencionado foi também reforçada: nos cuidados primários, o Utente tem sempre a liberdade de escolher ir ao setor convencionado fazer os seus exames, e nos cuidados hospitalares, sempre que a unidade hospitalar assim o prescreva, bem como obrigatoriamente quando não consigam assegurar um exame ou ato clínico até 85% do Tempo Máximo de Resposta Garantido (TMRG) ou do Tempo Clinicamente Aceitável (TCA). E assim, ao operacionalizar esta complementaridade, garante-se que a capacidade instalada do sistema privado e social convencionados contribuem para o cumprimento de um direito fundamental: o acesso em tempo útil.
E eis, então, quando através de um “botão”, mudamos, finalmente, de paradigma e reforçamos os três pilares fundamentais: melhoria do acesso, liberdade de escolha e a plena integração do setor convencionado como braço complementar do SNS.
Persistem, naturalmente, desafios importantes. A integração completa dos sistemas informáticos, a atualização das tabelas de atos e valores, e a criação de mecanismos automáticos de revisão das mesma tal como a Lei obriga, são passos críticos para sustentar a complementaridade e garantir que os prestadores convencionados possam continuar a operar em condições de qualidade e segurança. Mas cá estaremos para os resolver e fazer avançar o nosso sistema de saúde, no qual o Cidadão não é mais um número na lista de espera: é quem decide, dentro das opções disponíveis, onde e quando quer ser atendido.
Diretor-Geral da Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos