A Vida de P(a)i

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Escreve-se muito, e bem, sobre a criança e o adolescente. Como muitas outras dimensões fundamentais do ser humano, a atenção ao crescimento da criança e do adolescente, foi ganhando espaço. Na medida de uma maior consciencialização coletiva, de um aumento de conhecimento de várias disciplinas, de transformações sociais e dos papéis associados a estas, incluindo dentro de diferentes modelos parentais. O papel da mulher, nunca é demais reconhecer, tem passado por múltiplos desafios ao longo dos tempos. Uma luta, contudo, ainda em aberto a vários níveis e, em múltiplas frentes. Quando falamos da mulher, podemos em parte, falar do papel de mãe. E, também neste caso, parece haver uma perceção de uma maior consciência e reconhecimento de todas as facetas, desafios, dificuldades, pelas quais as mães passam. Contudo, não se pode perder de vista, as muitas desigualdades e discrepâncias que se mantêm. Quer seja no mundo ocidental, quer seja, em diferentes contextos culturais. Se parece certo que alguns passos foram dados, não menos certo é a necessidade de continuarmos a melhorar coletivamente.

No meio de tanto rebuliço social, por vezes, aborda-se pouco o papel do pai. Não apenas no sentido do que se espera do pai, mas da sua experiência subjetiva e única. E de um processo para o qual não parece haver um treino prévio, que garanta respostas a todas questões.

Olhava o infinito, como que a perscrutar respostas, com umas olheiras desenhadas a preceito, e dizia: oiça, sinto que um camião me passou por cima. Este primeiro mês, desde o nascimento, já tive a sensação de estar a perder a minha sanidade mental. Não durmo, dói-me as costas, sinto-me irritado, sinto também que não consigo fazer mais pela Joana, ela sim, a passar o mais difícil; e no meio de tudo isto, parece que me sinto culpado de não estar tão feliz como eu acho que devia!

Mesmo quando antecipada com vontade, desejo e envolvimento, a parentalidade por vezes bate à porta com estrondo. Nem sempre há uma consciência efetiva do que aí vem. A mudança é um conceito curioso. Em diversos momentos de vida, ambicionamos mudanças, mas vivê-las é, por vezes, mais complexo. A mudança é também vivida de forma implícita. Os impactos ecoam posteriormente, por vezes, é na linha do tempo que

é possível perceber, consciencializar o que foi sucedendo. A parentalidade pode ser um lugar de muitos ajustamentos. Impactos a nível emocional, de gestão de expectativas, da dificuldade em encontrar equilíbrios entre diferentes papéis sociais e necessidades pessoais, passando pelos impactos ocorridos nas relações amorosas, até às mudanças identitárias. Algo, por vezes não antecipado, é que estes desafios continuam a desenrolar-se numa estrada contínua, repleta de lugares desconhecidos. Não se trata, assim, de uma mudança. Mas de várias mudanças que vão ocorrendo.

- Lembra-se quando estive cá há uns anos?

- Sim...

- Estava arrasado de cansaço, na verdade extenuado, a minha filha tinha nascido há pouco tempo. Sabe o que é irónico? Passaram-se anos, cá estou eu nesta sala, a olhar de frente para a mesma janela, parece estar tudo igual, e.... o que me traz cá agora é novamente o que estou a sentir enquanto pai...

A filha tinha crescido. A adolescência tinha irrompido como um novo estrondo. Novas paisagens de alterações se desenharam no seu caminho. Como gerir este novo tipo de relação? Como equilibrar a liberdade e a autonomia com a responsabilidade e o cuidado? Como gerir mais um passo no processo de autonomização que se deseja, mas que promove em simultâneo angústias e preocupações? Mais uma vez parece não haver um guia escrito a seguir. Naquela tarde, passados anos, estando de volta, partilhou uma analogia curiosa.

- Sabe, sinto-me como aquela personagem do filme a "A vida de Pi". De repente estou metido num pequeno barco que está à deriva num mar imenso! Novamente. E tenho aqui um tigre, de frente para mim, que são as minhas angústias e as minhas questões! Às vezes entro mesmo em desespero. Parece que perco as referências. O que está certo, o que decidir, quais os critérios a seguir... enfim... como no filme, uma tempestade dentro de mim. Parece ridículo, não é? Mas é como me sinto.

Esta era a sua experiência de pai. Naquele momento. Já tinha passado por outros momentos. Uns mais tranquilos, outros tumultuosos. Como diversas dimensões de vida, um lugar a ser construído, por entre momentos e fases distintas.

Diretor Clínica ISPA

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