A vida a fluir 

É Ruy e Virgínia, 1917. Portugal na guerra, pior do que a de agora, mas a vida lá fluía, pois sempre tem de fluir, é andança incessante, só a morte a pára. Ruy e Virgínia, 1917, conheci-os há dias, na minha Feira da Ladra, ao fundo de um montão de livros, na iminência do lixo. Foi de lá que os resgatei (ou o que deles resta em gentil memória), por um triz e um acaso, desses da vida a fluir. Agora falam comigo, connosco, mais do que jamais julgaram, sob a forma de um caderninho florido, feito com apuro e esmero, dactilografado a preceito, como prenda de amor que o era, e sempre será. Ruy e Virgínia, na iminência do lixo.

Fique a obra boa ou má, divertida ou maçadora, pouco me importa.
Prometi-te um livro. Não te disse, porém, se ele ficaria em estado de o leres sem bocejar um cento de vezes.
Tudo o que vou escrever é um resumo da minha vida desde Maio do ano passado, ou antes, desde o primeiro dia em que te vi, pelo Carnaval.
É a história de um rapaz que, levando uma vida de despreocupação e divertimentos, sem pensar no futuro ou olhar ao presente, se sentiu num momento preso dum afecto completamente novo para ele; de um coração que, farto de percorrer o caminho das paixões de meia-dúzia de dias, topou enfim com uma que não mais o largará.

Ruy, apaixonado (e eu aqui, cem anos depois, a teclar-lhe os sentimentos num ecrã em branco). Por um acaso do destino, desses da vida a fluir, tudo começou com a guerra, que levara o governo a proibir os festejos carnavalescos nas casas de espectáculos da capital. Em resultado disso, uma família de Queluz decidiu organizar um baile em sua casa. Vieram até Lisboa, à casa da mãe de Ruy, e, por intermédio desta, convidaram o rapaz para o baile. Ele aceitou com júbilo.

Na véspera preveni-me com um lança-perfumes e uma porção de "confetti" e, munido destes apetrechos de combate e de uma boa disposição para me divertir, embarquei na tarde do dia seguinte para Queluz.
O comboio ia cheio. Quase tudo era gente que, em virtude da proibição governamental, ia passar as delícias de um baile de máscaras aos Recreios da Amadora.
Pusemo-nos em marcha depois dos berros e apitos do estilo.
E enquanto o comboio se encarregava de vencer as duas léguas que separam Queluz de Lisboa, o meu pensamento recuava 365 dias e ia fixar-se em certa pessoa que eu vira pelo Carnaval do ano anterior e durante alguns meses depois, até que, por causa da nossa situação beligerante, teve de abandonar Portugal.
Para onde fora, nunca mais o soube. E sorria ao pensar nesta aventurazita que já ia distante e decerto nunca mais se repetiria.
O comboio continuava avançando. Notei-o na semi-letargia em que ia mergulhado e, como que para lhe contrariar o andamento, continuei recuando na minha imaginação.

Avançava o comboio, rumo a Queluz, recuava Ruy em direcção a Alcobaça, um ano atrás.

Via-me em Alcobaça gozando os 15 dias de licença que obtivera na Companhia onde estava empregado. Via-me, não, via outra pessoa. E tocava um a um todos os pequenos episódios, quase insignificantes, que tinham recheado esses 15 dias de vida de ilusões e felicidade...
A carruagem havia-se já esvaziado.
Já lá ia a Amadora e lá tinham ficado, como eu previra, quase todos os passageiros.
Um sopapo do meu irmão veio interromper as minhas meditações. Havíamos chegado a
Queluz.

Longe ficaram Lisboa e a recordação alcobacense, que trouxera Ruy absorto em seus pensamentos ferroviários, oportunamente interrompidos por um sopapo do irmão. Agora, ali chegados a Queluz, foram levados de imediato para uma casa onde já se encontrava um "rancho de pequenas", uma das quais, moça de Queluz de Baixo, Ruy conhecia bem e até tratava por tu. Foi então que se encontraram. Na primeira vez que se lhe dirigiu, Virgínia chamou-lhe estúpido, sem mais.

- Estúpido!!!
Era comigo. O estúpido era eu e quem assim me classificava, sem sequer fazer a justiça de me examinar, era uma das poucas pequenas que eu ainda não conhecia.
Tu conhece-la, de sobejo. Mas era tão interessante a sua figura nesse momento que eu não resisto à tentação de a descrever, embora mal.
Era uma pequena dos seus 16 anos. O vestido que trazia deixava logo a impressão de que a sua gentil proprietária era uma criaturinha muito simples, mas de gosto. E se se apertasse mais o exame à pessoa, ver-se-ia que o penteado, as maneiras e a quase ausência de jóias não desmentiam, antes confirmavam, o juízo que houvéssemos feito.
Não era destas meninas que, pela beleza, atraem imediatamente a atenção de qualquer.
Não. A sua simplicidade, sempre acompanhada do bom gosto, estendia-se até à própria formosura.
Em toda a sua figurinha, a um tempo robusta e gentil, não havia nada que se salientasse. Mas eram tão harmoniosas todas as suas linhas, tão delicada a sua expressão que quem a olhasse bem não hesitaria em dizer que tinha na sua frente uma linda rapariga.
Acrescente-se ao desastrado retrato que fizemos um pouco de rubor nas faces, devido à animação da brincadeira a que se entregava com entusiasmo, ponha-se-lhe enrolada ao pescoço e caindo-lhe sobre os ombros uma toalha felpuda já quase totalmente ensopada, pendure-se-lhe no braço esquerdo um saco com bugigangas carnavalescas, desenhe-se-lhe nos lábios o mais adorável dos sorrisos e teremos melhor ou pior traçada a figura da menina Virgínia P., a tua figura, na ocasião em me falaste pela primeira vez.
- Porque me chamaste estúpido?
- Provavelmente porque te estava satirizando com qualquer brincadeira própria da época.
O certo é que, ao ouvir o elogio, fiquei um pouco apalermado. Não contava com ele, explica-se.
- Mas a tua fisionomia não condizia com a palavra e isso animou-me.
Não me lembro do que te respondi. Porém, quando o diálogo terminou, fiquei com a impressão, bem pouco modesta, por sinal, de que tu farias de mim todas as opiniões menos a de que eu era estúpido.
E deixei-te em paz.

Estúpido Ruy não seria, mas um pouco desastrado, talvez. No caderninho florido, que ofereceu à amada no primeiro aniversário de namoro - 14 de Maio de 1917 -, conta-lhe que já ouvira falar dela, muitas e muitas vezes, mas fez-lhe um retrato dantesco: "Era feia, tinham-me dito, possuía uma testa descomunal, um nariz excessivamente arrebitado, um génio insuportável e muitas outras qualidades desta natureza e, não tendo com que contrariar estas opiniões, eu fazia da tal Virgínia um conceito que lhe era pouco favorável".

Depois dançaram. Na valsa, ela mostrou-lhe que sabia tudo dele, dos amores pretéritos por Alcobaça, dos dias que tinha vindo a Queluz, dos postais que ele escrevera durante a sua "viagem à província". Encorajado, Ruy avançou. Virgínia, em bom português, disse-lhe para não pôr o carro à frente dos bois. E ele, ingénuo ou macaco, fez-se de lucas: "O sentido genérico do provérbio sabia eu qual era. Não via, porém, como relacioná-lo com a minha pessoa".

Nos dias a seguir ao baile, toda a Queluz já falava da Virgínia e do Ruy. O namoro à séria, porém, não começou então, mas semanas depois, num outro baile, e foi testemunhado por uma peça de mobiliário.

Dançámos e depois de umas duas voltas dadas à sala, a nossa conversa animou-se a ponto de nos esquecermos da dança e dos olhares de quem dançava.
A um lado da sala havia um movelzito, e foi ele o cúmplice do início do nosso amor.
Apoiaras o teu braço direito sobre esse móvel e o teu rosto como que se emoldurara na mãozinha que esse braço havia levantado.
A mão esquerda brincava distraidamente com qualquer bugiganga das muitas que tinhas à tua disposição, e o teu olhar seguia-lhe os movimentos.
Estavas linda nesse momento, Virgininha.

À saída da festa, alguém gritou em voz alta "Namoras o Ruy, namoras o Ruy, dize lá agora que é mentira!». Ela corou. (e respondeu que não tinha graça nenhuma o que acabara de ouvir).

14 de Maio de 1917, o dia seguinte às aparições de Fátima, Lisboa mergulhada na "Revolta da Batata". Ao chegar ao escritório, Ruy tinha uma carta de Virgínia a aguardá-lo. Devorou-a num segundo, ou assim lho disse no caderninho florido. "Assim começou o nosso namoro", doravante firmado, mas ainda íntimo. O resto, no fluir da vida, são proclamações e suaves ditos, próprios do amor burguês, tão banais quanto sentidos: "Era um anjo como tu que eu desejava um dia ter para companheiro de toda a vida"; "não te mereço, bem sei"; "em troca de toda a tua formosura, de toda a tua radiante mocidade; em troca de tanta prenda que possuis, desde a modéstia à bondade, que é a maior de todas elas, só posso oferecer-te uma posição menos que medíocre e o meu amor. Se chega para as tuas aspirações, tem-las bem pequenas, confesso, mas juro-te que saberei agradecer-te e que seremos felizes."

"Longe ficaram Lisboa e a recordação alcobacense, que trouxera Ruy absorto em seus pensamentos ferroviários, oportunamente interrompidos por um sopapo do irmão. Agora, ali chegados a Queluz, foram levados de imediato para uma casa onde já se encontrava um "rancho de pequenas", uma das quais, moça de Queluz de Baixo, Ruy conhecia bem e até tratava por tu. Foi então que se encontraram. Na primeira vez que se lhe dirigiu, Virgínia chamou-lhe estúpido, sem mais."

Termina o caderno com uma cronologia, a que Ruy deu o título pomposo, mas amorosamente explicável, de "Datas Célebres do Primeiro Ano do Nosso Amor". A primeira das quais, como é óbvio, o dia 14 de Maio, o da carta recebida no escritório. Cinco dias mais tarde, "obtive consentimento para nos tratarmos por tu. Uma condição me foi imposta: ser eu o primeiro a usar do novo tratamento". A 2 de Junho, viram-se pela primeira vez depois do começo do namoro, ia ela na rua na companhia de um professor e de algumas amigas, que lhe ralharam por o ter cumprimentado. Conversaram-se mais livremente no dia 16 de Junho: "Enfim, pude, ao fim de um mês, falar-te um pouco mais à vontade. Tinhas vindo para Lisboa, para casa de teu irmão, e conseguiste que tua criada te acompanhasse ao fundo da escada. Aí trocámos as nossas primeiras palavras de namorados, tendo por testemunha a figura solene da tua sopeira...". Combinaram avistar-se no dia seguinte: ele foi mudar de fato a casa, esperou-a no Rossio, vinda de táxi do Poço do Bispo, foram ao Animatógrafo. A 22 de Junho, a primeira, mas passageira, nuvem, uma carta da amada, que Ruy considerou ter "um bocadinho de cólera, outro bocadinho de ironia e o resto de criancice". Virgínia emendaria a mão dias depois, a 29, em missiva mais calorosa, proclamando amá-lo até à morte. E a seguir enviou-lhe um retrato, "pequenino, mas parecido, e portanto bonito", que Ruy guardou religiosamente. A 23 de Julho, dia do aniversário de Virgínia, Ruy deu-lhe uma lembrança, e a mãe dela ficou a saber do namoro, que prosseguiria a bom ritmo, no fluir da vida: ele foi vê-la a Queluz, depois a Paiões, Virgínia reciprocou com uma recordação comprada no Senhor da Serra, as cartas começaram a ficar maiores e, segundo ele, mais intensas ("as palavras que empregas mostram bem a alegria que te vai no coração"). No dia do aniversário de Ruy, 28 de Novembro, pouco depois da revolução russa dos bolcheviques, Virgínia enviou-lhe uma carta, um bordado e uma caneta de prata. Passado o Natal, chegou novo Entrudo, e, com ele, o aniversário do primeiro encontro: "Faz um ano que me chamaste estúpido. Faz um ano que me roubaste o coração".

Mais acontecimentos há ainda dignos de menção, que não incluí por ignorar as datas. São eles a oferta do teu 3.º retrato, as vezes que te acompanhei aos teatros Éden e Ginásio, a tua ida para o Estoril e aquela linda noite de luar que ouviu as nossas confidências, e talvez alguns factos que porventura me esqueçam.
Devo também dizer-te, para acabar, que durante estes 12 meses te tenho achado cada vez mais linda.

O caderno termina com alguns poemas, terríveis e indizíveis, próprios do amor burguês, e nada mais se sabe do que aconteceu a Ruy e Virgínia, hoje é tudo gente morta. Estiveram há dias na minha Feira da Ladra, debaixo de um montão de livros, na iminência do lixo, mas ignora-se como correu o namoro, se então enfim se casaram, se foram felizes ou não, se houve zangas e filhos, quando terão morrido. À pergunta da canção, que restará dos seus amores, ninguém ousará responder. Em todo o caso, é estranho e belo pensar que hoje, daquelas duas existências, ao acaso intersectadas, sobra só um caderninho, feito com apuro e esmero, a prova do amor eterno. Love never dies, já se dizia no Drácula, e é mesmo e tanto assim.

Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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