A viagem de Joe Biden e a declaração europeia: que impacto têm?

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Não me cabe dar conselhos ao Presidente Joe Biden. A minha preocupação é olhar para os grandes acontecimentos internacionais e tentar perceber que impacto poderão ter sobre as populações mais vulneráveis, sobre a paz e, também, sobre o futuro da Europa, o espaço geopolítico em que nos inserimos. Nessa ótica, não posso esquecer que a Europa continua muito dependente dos EUA. Essa subordinação, sobre a qual tanto tenho escrito para defender uma autonomia europeia mais marcada, tem várias dimensões. Umas positivas, outras que poderão ser consideradas como prejudiciais aos nossos interesses.

A crise de Gaza, por si e no seu quadro mais amplo, é uma dessas situações. Exige uma posição clara, baseada nos princípios fundamentais da soberania dos Estados, da segurança das pessoas e no respeito absoluto pela vida e demais direitos humanos. Deve igualmente ter-se em conta a leitura política que, noutras regiões do globo, muitos fazem do conflito. A UE, que diz ter uma ambição geopolítica, não pode ignorar essa leitura. Essa ambição não passa apenas pela exportação de viaturas alemãs para os mais diversos cantos do mundo, ou pela venda de champagne na China, nem mesmo quando despende milhões de euros na ajuda humanitária e no apoio ao desenvolvimento. São questões importantes, sem dúvida. Mas no mundo moderno, a coerência na cena internacional vale muito mais. A credibilidade política é um trunfo maior.

Biden foi a Israel, como havia planeado à última hora. Não farei referência à política interna nos EUA, mesmo reconhecendo que a deslocação será vista por muitos americanos como parte do clima de pré-campanha eleitoral que já se vive no país. Também não quero sublinhar apenas a faceta solidária, que certamente pesou imenso na decisão de viajar. Gostaria de ver, tão só, uma potência como os EUA fazer um jogo reconhecido como equilibrado.

Mais concretamente, Biden não pode esquecer o problema palestiniano. Quando a Jordânia lhe comunicou que o encontro com os seus homólogos -- o rei da Jordânia e os presidentes do Egito e da Palestina -- fora cancelado, Biden devia ter reagido de modo audível. Não lhe pediria que anulasse a viagem a Telavive, o que, no entanto, não seria de excluir como uma hipótese a considerar. Mas, deveria ter afirmado publicamente que via o cancelamento com grande apreensão, por considerar ser essencial reunir-se, neste momento tão crítico, com a Autoridade Palestiniana bem como com os vizinhos de Israel.

Quero acrescentar uma nota positiva. Refiro-me às palavras de prudência de Biden quando disse, e vou parafrasear, que os israelitas não podem deixar que a "raiva" seja a linha condutora da sua campanha contra o Hamas e Gaza. Um Estado avançado não deve agir por razões de raiva ou vingança, que acabem por punir coletivamente um povo. As suas bases de atuação devem assentar com moderação nos princípios do direito democrático, da justiça e da segurança nacionais, e no respeito pelas leis e convenções internacionais. Olho por olho, dente por dente é um ditado primitivo, inaceitável nas sociedades evoluídas. Tem de haver uma diferença incomensurável entre os modos de agir de um Estado de direito e de um grupo terrorista.

Neste tabuleiro tão complexo, é triste ver que a UE não é tida como um participante significativo. A intervenção geopolítica, prometida por Ursula von der Leyen no início do seu mandato, parece ser levada a cabo por um gatinho doméstico, anafado, e até sem garras. Depois de várias hesitações e confusas declarações, a Europa conseguiu finalmente adotar uma posição comum, que considero incompleta. Condenou os ataques hediondos do Hamas de 7/10, reconheceu que Israel usufrui do direito de defesa, desde que exercido no quadro da lei internacional, pediu a libertação dos reféns e assegurou-nos que continuará a ajuda humanitária às populações de Gaza. Foi positivo ao lembrar que a solução passa pelo estabelecimento de dois Estados. Mas faltou uma tomada de posição sobre o bloqueio a Gaza imposto à moda medieval, como também não referiu que a crise exige o máximo de contenção. Legítima defesa, um direito incontestável, tem de ser exercida de um modo razoável.

No essencial, os governos europeus não são vistos, quer por segmentos internos das suas populações quer por vários Estados, como objetivos. É fundamental responder a essa perceção para que se possa contribuir efetivamente para a construção da paz.

Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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