A verdadeira prova superada

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É o regresso de Simone Biles ao Ouro Olímpico no all-around, tornando-a a primeira mulher desde 1968 a vencer duas vezes o título individual na ginástica. É a ginasta com mais medalhas da história. Vê-la é assistir a um bailado onde tudo parece fluir sem dor e onde a genialidade parece natural. Por trás dos curtos minutos de performance dos atletas olímpicos estão infinitas horas de treinos, ensaios, massagens, sessões de recuperação física e outros mecanismos desportivos para que o corpo seja uma máquina obediente. Mesmo cumprindo tudo à letra, há um elemento invisível que pode pôr tudo em causa: a mente.

Simone Biles é um exemplo de como desistir pode ser a única forma de vencer. Depois de ter sido a estrela maior no Rio de Janeiro há oito anos, em Tóquio desmoronou. Sofreu um fenómeno chamado the twisties, em que se dá uma desconexão entre a mente e o corpo.

“Este é o exemplo que posso dar: todos os dias conduzes o teu carro. Um dia, acordas e não fazes ideia de como se conduz. As tuas pernas mexem para qualquer lado, não tens controlo sobre o teu corpo. Fazes uma coisa há tanto tempo e de repente perdes o controlo. Foi isso que aconteceu com o meu corpo. É aterrador”, descreveu.

Descurar a saúde mental custou-lhe a desistência da competição e logo veio o estigma e a crueldade: comentadores, políticos e apresentadores de TV, como Piers Morgan e Charlie Kirk, chamaram-na  “fraca”, “egoísta”, “imatura”, “uma vergonha para o país” e consideraram a saúde mental um “capricho” e uma “desculpa” para a saída. Veem os atletas como entretenimento para o público a todo o custo, e não como pessoas.

Esta narrativa tem custado a vida a muitos. Victoria Garrick, ex-atleta de voleibol com uma carreira de sucesso, conta na sua TED Talk a difícil jornada com depressão, ansiedade e distúrbios alimentares comum a muitos profissionais. “A cultura promovida entre os atletas é: os melhores não descansam. A menos que vomites, desmaies ou morras”, continua.

Quando ganham, são os heróis da nação; quando perdem, nem deviam ter o direito de ter nascido nela, lê-se entre os internautas. Não há lugar à empatia, nem à humildade de se assumir que não se sabe o que está por trás: no caso de Simone Biles, além da pressão do mundo desportivo e das marcas, estão também os abusos sexuais de que ela e outras dezenas de atletas foram alvo, por parte do médico Larry Nassar: “Garanto-vos de que o impacto dos abusos deste homem nunca se esquece”, disse no seu testemunho em 2021, depois de Tóquio.

Foi o maior caso de abuso sexual na história do desporto americano. Biles é uma heroína, não pelos recordes, mas pelo que conseguiu enfrentar para chegar a eles.

Nesta época de férias, que ela seja inspiração para sabermos descansar e, sobretudo, aprendermos a distinguir entre trabalhar arduamente e trabalhar na base do sofrimento, sem olhar aos sinais. A lição de Biles em Paris é esta: desistir pela saúde mental é vencer lá à frente.

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