A verdade de Nan Goldin

Vendo ou revendo as fotografias de Nan Goldin no filme Toda a Beleza e a Carnificina, de Laura Poitras (um dos títulos nomeados para o Óscar de Melhor Documentário, já em exibição nas salas portuguesas), não pude deixar de pensar na tocante singularidade dos seus retratos e, sobretudo, autorretratos. Mais exatamente: no modo como as suas imagens carrilam uma noção dinâmica de identidade que resiste, ponto por ponto, à obscenidade democrática das redes a que chamaram "sociais".

Observe-se a atual proliferação de selfies, sobretudo no Instagram. No momento em que escrevo, são mais de 450 milhões de imagens (com a indicação: #selfie). Para lá das exceções, tal avalancha é tristemente reveladora da falta de imaginação gerada pela saturação de imagens em que vivemos - ou somos obrigados a viver. Para se representarem ou autorrepresentarem através de uma imagem, milhões de pessoas de todos os cantos do planeta mais não querem, ou mais não exigem de si próprias, para lá de erguerem o telemóvel com uma mão, rindo ou sorrindo para o ecrã, elegendo-se como protagonistas de um destino que parece esgotar-se no gélido absurdo do instante.

Desmentindo as múltiplas hipóteses criativas do olhar de fotógrafos como Henri Cartier-Bresson, Robert Frank ou Gérard Castello-Lopes, a velha designação de instantâneo fotográfico anula-se, assim, no seu grau zero. Já não se trata de conceber e praticar o instantâneo como um ícone paradoxal da vertigem do tempo que passa. Nada disso: na maior parte dos casos, através da banalidade da selfie, o fotografado parece acreditar na sua triste encarnação como entidade transcendental - a vulgaridade da pose alimenta a ilusão de uma bênção da eternidade.

O filme de Laura Poitras não começa pelas fotografias de Nan Goldin, antes destacando a sua militância no grupo P.A.I.N. (Prescription Addition Intervention Now). O alvo do grupo é a Purdue Pharma, companhia de produtos farmacêuticos da família Sackler, por causa do seu papel na epidemia dos opioides que abalou a sociedade norte-americana: Nan Goldin, ela própria marcada por esse flagelo, denuncia as doações dos Sackler a diversas instituições e museus como um modo de ocultar as suas responsabilidades na circulação de medicamentos que criaram brutais formas de dependência.

Desta vez, Laura Poitras evita a facilidade demagógica do seu Citizenfour (2014), documentário que através da "canonização" ideológica de Edward Snowden contornava as perturbantes ambivalências da sua história, depois encaradas e trabalhadas por Oliver Stone no filme Snowden (2016). Assim, em vez de instalar um banal "tribunal" mediático para alimentar a boa consciência do espectador, a saga anti-Sackler vai suscitando um importante desvio pela história pessoal de Nan Goldin - ou seja, através da verdade inscrita nas suas fotografias.

"No documentário Toda a Beleza e a Carnificina, a realizadora Laura Poitras expõe a intimidade radical do ato fotográfico."

Que verdade é essa? A de uma intimidade radical. E tanto mais quanto - através da imagem, justamente - essa intimidade se transfigura e repensa como matéria suscetível de acolher os olhares provenientes do exterior. Afinal de contas, o núcleo irradiante da obra de Nan Goldin está num livro de 1986 (ed. Aperture, Nova Iorque) cujo título original se traduz por: A Balada da Dependência Sexual.

Ao fotografar, e fotografar-se, a começar pelas imagens do período 1979-86 incluídas em The Ballad of Sexual Dependency, Nan Goldin assume o ato criativo como gesto que transcende qualquer noção esquemática de "registo" ou "reprodução" - o que, entenda-se, não exclui, antes intensifica, o seu poder documental. As fotografias dessa época, sobretudo na amostragem de formas de dependência ou mercantilização sexual, distinguem-se por um desnudamento (literal ou emocional) que as afasta de qualquer retórica "sociológica" ou "simbólica".

O documentário de Laura Poitras sabe dar-nos a ver o modo como uma fotografia, mesmo quando possa justificar o rótulo de selfie, representa um desafio com tanto de estético como de ético. Neste tempos de narcisismo sem arte e sem desejo, Toda a Beleza e a Carnificina arrisca ser algo que passámos a menosprezar: uma bela lição moral. Talvez algo próximo de uma hipótese formulada por Ludwig Wittgenstein (Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2014): "Um pensamento que ecoa no ver."

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