A Ucrânia é complexidade, não simplismo

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Creio que deve ser pacífico neste momento que uma intervenção militar, para mais com as características da invasão russa da Ucrânia, não é admissível em 2022. É uma violação grave do direito internacional, um apoucamento das organizações internacionais multilaterais e das suas regras de conduta, uma violência inaceitável contra pessoas e bens na Ucrânia, desde logo civis. E o seu causador imediato é a Federação Russa, sem margem para dúvidas.

Mas deve esta guerra provocar também alguns efeitos e consequências que sentimos hoje?

Um deles é a reação de censura e de bloqueio em relação a tudo o que é russo. Quer a União Europeia efetivamente censurar canais de informação de origem russa, com base numa legitimidade pelo menos questionável, e que efetivamente põe mais em causa a própria União Europeia do que a sua origem russa? Deve efetivamente a alegada propaganda russa televisiva ser banida do espaço da Europa ocidental? É difícil perceber-se que haja uma opção tão marcada por um dos lados, quando, desde logo em matéria de energia e de dependência económica, afinal o decisivo, é muito mais difícil qualquer tomada de decisão europeia coletiva, rápida e eficaz.

Adicionalmente, deve dizer-se que a censura comunicacional é sempre uma reação dos fracos. Podem sentir-se até decentes, mas o que exibem é a sua fraqueza. Tal como sucede, aliás, na Rússia. A censura na União Europeia do canal russo de televisão RT é uma fraqueza da União e, mais cedo ou mais tarde, isso será notório, na defesa de um mundo que se quer plural, aberto e conflitual na sua base.

Nesta última semana vi, pela primeira vez, numa televisão nacional, a reportagem sobre uma família ucraniana, de origem e pertença russa, a ser presa por soldados ucranianos pela sua adesão, semântica, ao lado do inimigo. Eles, tão ucranianos como os demais, creio, e que não podem renegar a sua origem, a sua pertença e aquilo em que acreditam. Numa Ucrânia que, um muito recente estado, com três décadas, na verdade foi desde há séculos, na história, um espaço de partilha entre a influência e as legitimidades russa, polaca e austro-húngara. A narrativa de muitos ucranianos está, também, a ser censurada entre nós, que somos, desde logo pela imprensa, reféns agora de uma perspetiva singular, mesmo que provavelmente justa e legal, mas não única. E esta falta de unicidade deveria justificar, só por si, uma visão mais plural e mais efetiva, real, na informação que nos chega.

Apesar de provavelmente justo, não deixa de ser dramático que os relatos da imprensa que nos chegam sejam sempre os dos ucranianos que se sentem violentados e quase nunca os daqueles que se sentem vindicados. Porque eles também existem e a complexidade do espaço em causa justificaria outra perspetiva, distinta, sem que isso significasse o apoio a uma invasão ou a um invasor.

A Europa, aqui incluindo a Ucrânia, é um caldeirão de pertenças, nacionalidades, legitimidades e poderes sucessivos e rotativos. Talvez Portugal e Espanha se tenham sentido um pouco mais confortáveis nesse devir histórico, mas a realidade da Europa central e oriental representa bem essa fluidez de fronteiras e pertenças. Ora, a União Europeia, que nunca quis até hoje relações profundas ou a adesão da Ucrânia, por ser um estado estruturalmente corrupto, instável, pobre e efetivamente numa esfera recente e rotativa de influência russa e ocidental, ou a NATO, que nunca pugnou pela adesão da Suécia ou da Finlândia, por respeito a uma sempre delicada situação entre blocos militares, estão hoje a jogar a sua própria posição internacional. Pode até ser por um motivo de fé ilimitada na legitimidade democrática ocidental. Ou pela ideia de que se defendem, preventivamente, de uma nova Rússia imperial. Mas, pragmaticamente, desconhecemos todos o seu resultado e este deveria ser, mesmo que injusto perante a pauta dos nossos dias, aquele que favorecesse a paz global e a estabilidade. Para os que valorizam especialmente as nacionalidades e os nacionalismos, se algo dos séculos XIX e XX passou para o nosso tempo, deveria ter sido esse abrandamento dos espíritos emocionais em relação a uma pertença estadualizável e permanente, por ser o mais distante da paz e do quotidiano das pessoas.


Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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