A tropa somos nós
Nunca como hoje se gastou tanto dinheiro em armamento, material de guerra, e só na última década as despesas militares quase duplicaram em todo o mundo, na razão direta das desigualdades e da fome.
Depois da humilhação das potências ocidentais em solo afegão, temos agora, e porventura por largos meses, a "crise dos submarinos". Sem passar cartão aos seus parceiros europeus, os Estados Unidos deixaram Cabul e acabam de armar uma nova aliança com o Reino Unido e a Austrália, passando esta a perna à França, a única potência europeia fabricante de submersíveis nucleares. Mais que "uma facada nas costas", como o ministro francês dos Negócios Estrangeiros se refere ao lance dos velhos aliados, é a Europa em sobressalto a tomar consciência da necessidade de uma mudança estratégica em relação à sua defesa e segurança.
O argumento é simples: qualquer ator que se queira chamar a si mesmo de geopolítico necessita de capacidade militar, mesmo que o seu caráter seja meramente dissuasório. Ora, a União Europeia não a tem nem se previa que viesse a ter. E o que até há pouco era uma questão teórica tornou-se agora uma emergência. Daí o anúncio de uma cimeira europeia especialmente dedicada à defesa, quando a França assumir em janeiro a presidência do Conselho, "para que a Europa possa (re)aprender a manejar a linguagem do poder".
Os abalos provocados pela queda da União Soviética e a subsequente confirmação da China como superpotência global têm sido acompanhados pela mudança de orientação dos Estados Unidos quanto à prioridade dos seus interesses - cada vez mais no Pacífico e menos no Atlântico Norte. O novo mapa do poderio militar, com os novos blocos a arreganhar os dentes e mostrar músculo, lembra cinicamente aos europeus a miséria da sua dependência estratégica, debaixo do guarda-chuva americano, e a necessidade de a União buscar um equilíbrio entre Washington e Pequim na nova guerra fria que aí está, procurando recuperar a sua vocação de ator geopolítico global.
Acontece que todo este tilintar de esporas tresanda a passado. Pura e simplesmente porque as principais ameaças contra os europeus, portugueses incluídos, não pode ser combatida com aviões ou submarinos nucleares. A guerra dos nossos tempos já se trava na internet e nas redes digitais, hoje convertidas num espaço de competição geopolítica, que os Estados aspiram a controlar ou a evitar que outros controlem. O mapa-mundo da guerra e da pirataria informática é arrepiante. Os ataques, ou invasões, na forma de vírus ou "cavalos de Troia", podem manipular os algoritmos que comandam as redes digitais, roubar códigos de acesso a contas bancárias ou alterar e destruir redes elétricas, sistemas de abastecimento de água, centrais nucleares, serviços de saúde, transportes. Ou seja, podem afetar severamente a vida dos cidadãos e o normal funcionamento das economias. Em resumo, matérias escaldantes no domínio da defesa europeia e nacional. Ora, esse combate de futuro trava-se com outras armas: conhecimento, inteligência, tecnologia. E investir nelas significa recuperar o atraso em relação aos novos blocos dominantes e é certamente mais barato e avisado que comprar aviões de caça ou submarinos. Perante uma nova visão europeia em matéria de segurança e defesa, que certamente implicará acréscimo de despesa, não podemos ficar indiferentes nem encarar os respetivos orçamentos como "coisas da tropa". Porque numa Europa democrática e de paz, a tropa somos nós.
Jornalista