A sátira humorística tem limites
A sátira é, desde Aristófanes, um dos mais relevantes dramaturgos da comédia na Grécia antiga, um instrumento de crítica política e social. No ordenamento jurídico português a liberdade de expressão, acolhida no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), não se reveste, no entanto, como qualquer direito, mesmo que com previsão constitucional, de natureza absoluta. Na realidade, o artigo 18º da CRP regula o conflito de direitos, a necessidade da ofensa de direitos e a proporcionalidade do exercício de direitos em conflito. O litígio movido pelos irmãos Sérgio e Nélson Rosado, da dupla Anjos, contra a humorista Joana Marques reflete a tensão e conflito entre direitos. Alegam os mesmos que a factualidade que constitui o seu capital de queixa, constitui um verdadeiro cyberbullying, que originou a perda de patrocínios e danos reputacionais superiores a um milhão de euros. Discute-se no processo a colisão entre o direito à criação humorística e os direitos de personalidade tutelados pelos artigos 70.º e 71.º do Código Civil. Quando a sátira humorística invade a esfera da personalidade de terceiros, designadamente honra e o bom nome, ao nível pessoal e/ou profissional, podem estar em causa a ultrapassagem dos limites ao exercício proporcional do direito e à necessidade da lesão. A jurisprudência nacional tem defendido que a crítica, sobretudo a mais mordaz, encontra barreiras nos deveres de veracidade, necessidade e proporcionalidade. O Supremo Tribunal de Justiça sustenta que ninguém pode ser alvo de ridicularização persistente quando tal é suscetível de afetar a respetiva dignidade. O Tribunal Constitucional, por seu lado, defende que o artigo 18.º, n.º 3 da CRP veda restrições que esvaziem o núcleo dos direitos, impondo ponderação casuística. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Axel Springer AG v. Alemanha, definiu critérios para a legitimação da “ofensa” aos direitos da personalidade relativos ao bom nome e reputação: interesse público, notoriedade, a gravidade da ofensa e o tipo de sanção. A sátira e o humor provocatório, gozam generalizadamente nos tribunais de proteção reforçada. Porém, quando tal exercício assenta em factos falsos ou vai além do necessário para fazer humor, ainda que mordaz, os tribunais aditem intervir no sentido de lhe impor limites. No processo em causa, como em muitos outros semelhantes, o tribunal averiguará se o humor excedeu o que um observador razoável qualificaria como comentário artístico admissível. Caso reconheça ilicitude na atuação, a responsabilidade civil pode dar lugar a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais. A sanção da ilicitude, nestes casos, a existir, mediante a análise de cada caso concreto, não censura em abstrato o humor, antes reafirma que nenhum direito deve prevalecer sobre outro em termos absolutos, a ponto de aniquilar o direito ofendido. Dois vetores orientam a atividade do intérprete e aplicador do direito neste tipo de casos: i) o animus jocandi não exonera a responsabilidade se o conteúdo objetivamente ultraja a reputação; ii) quanto maior a audiência, maior o dever de diligência na verificação dos factos propagados, pois a esfera mediática tem a potencialidade de intensificar a lesão do direito e o dano. Em suma, a liberdade de expressão humorística, mesmo a satírica, é amplamente protegida; mas não pode ser exercida de forma ilimitada. A criatividade humorística deve e tem de ser protegida, mas, mesmo este especial direito de liberdade de expressão, deve sofrer restrições quando implica a aniquilação do bom nome, da reputação ou da dignidade dos visados, ou, quando é suscetível de provocar danos graves e desproporcionais, casos em que a ordem jurídica deve intervir para restabelecer o equilíbrio e a justa proporção do exercício de direitos em colisão.
Advogado, Sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados