A surpresa

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Devo pertencer ao número, parece-me que bastante pequeno, dos portugueses que não ficaram surpreendidos com a vitória de Donald Trump. É que apurar o que realmente se passa requer um esforço que a nossa comunicação social tende a não querer fazer, por negligência, ingenuidade ou militância.

Assim impera a “narrativa dominante”, independentemente do seu desfasamento da realidade e do facto de assentar no que é basicamente um processo de propaganda. Devemos este processo aos grandes mestres do século XX, de Trotsky a Goebbels: o combate político é uma luta entre o Bem e o Mal em que o próprio é o arauto do Bem e o outro a encarnação do Mal. E como a Esquerda conseguiu que Hitler e do Holocausto ficassem eternamente colados à “Direita” e que a Humanidade esquecesse os horrores do comunismo, ou os absolvesse como parte dos danos colaterais do Bem e da Virtude – das Fomes da Ucrânia ao Arquipélago de Goulag, dos massacres de Budapeste ao Grande Salto em Frente da China –, todo o líder que começa a ensombrar o domínio da Esquerda passa automaticamente a “fascista” e a “novo Hitler”.

Foi o que aconteceu ao ex-liberal nova-iorquino Donald Trump assim que se fez paladino do mal-estar e dos anseios das massas conservadoras e trabalhadoras e representante de um qualquer novo conservadorismo populista: deixou de ser visto como um sintoma para passar a ser apresentado como um homem isolado, uma aberração, um monstro, o “novo Hitler”, alguém capaz de manipular o povo através de um diabólico instrumento de última geração: as “redes sociais” com as suas proverbiais “fake news”.

Mas se as redes sociais, com as suas proverbiais fake news e os seus implacáveis algoritmos, alimentam a bolha de um lado, também alimentam a bolha e o desfasamento da realidade do outro. Felizmente, para combater este manequismo temos a comunicação social...

Ou teríamos, se os media de referência não nos impusessem ad nauseam como única referência, como única causa moralmente superior, verdadeira, democrática, virtuosa... um dos lados.

É uma estratégia inadmissível para quem se quer “de referência”, mas compreensível como estratégia partidária. O Partido Democrata, que tem nas entourages dos presidentes Clinton e Obama uma mão invisível capaz de pôr e dispor, usou-a: manteve à força a ilusão da operacionalidade de Joe Biden e quando Biden falhou na prestação televisiva contra Trump substituiu-o (tal como em 2020 o impusera para afastar o radical Sanders, que perderia contra Trump). Depois considerou que o melhor era fazer da eleição um referendo anti-Trump com a candidata possível – que a máquina de propaganda do partido logo transformou numa Joana D’Arc instantânea. A dupla democrata avançou então sob o signo da “alegria” com o seu arsenal de causas e micro-causas fracturantes, insistindo na “liberdade reprodutiva” (a nova nomenclatura para o aborto) em detrimento de outros direitos, liberdades e garantias mais vitais. Consciente que tudo aquilo pudesse ser demais para o parco entendimento do americano médio, o par ensaiou então o recuo para o centro que tinha no guião: afinal, bons ou maus, competentes ou incompetentes, moderados ou radicais eram a única alternativa à encarnação do Diabo – o vilão Trump e o seu insidioso co-vilão J. D. Vance.

O que é que podia correr mal? Os media de referência, os pequenos e médios intelectuais e tudo o que era artista estariam com eles contra os grunhos.

Os grunhos não gostaram. Os Estados oscilantes balançaram para o outro lado e o voto popular também. Quando se vive numa bolha a realidade tende a surpreender-nos.

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