A situação no Afeganistão

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As últimas notícias de Cabul são as que muitos de nós esperávamos: o pior pesadelo possível. Tantas fatalidades no momento mais sensível, quando as forças dos Estados Unidos estavam a tentar sair de vez e os talibãs estavam a tentar não interferir na saída. É o sinal do que pode vir a tornar-se o futuro do país, após quase 20 anos de tentativas do Ocidente para erradicar exatamente a mesma organização terrorista e os seus membros.

A situação no Afeganistão está a tornar-se muito clara. Isto significa que mesmo os participantes diretos nos últimos acontecimentos não têm qualquer ideia de como devem agir após a partida das tropas americanas e internacionais. Para os EUA a única coisa importante é sair de lá até 31 de agosto e para os talibãs também. Todos aqueles que estão no meio não têm hipótese de se salvar. Principalmente os afegãos que trabalharam para as forças internacionais durante muitos anos, independentemente de terem ou não vistos válidos para deixar o país.

O presidente Biden dos Estados Unidos, em conjunto com os seus assessores, decidiu cortar a ligação americana com este país. Eles tinham obviamente um bom motivo. Depois de tantos anos, a opinião pública nos EUA começou a tornar-se muito negativa em relação às guerras remotas e às baixas americanas. As autoridades locais, sendo pró-americanas, simplesmente não acreditavam que esse dia chegaria tão cedo. Eles estavam convencidos de que o apoio dos EUA os deixaria seguros para sempre, usando a confiança que Washington depositava neles e a sua capacidade de manter o controlo do país. Infelizmente para eles, isso não vai acontecer.

Há uma pressão internacional sobre as forças americanas para que estas prolonguem a sua permanência em Cabul depois de 31 de agosto. Os americanos não o querem fazer, porque isso poderia levá-los ao conflito direto com as forças talibãs e à necessidade de trazerem de volta mais soldados. Os talibãs, por sua vez, entendem que devem aproveitar este momento para expulsar os americanos, como uma oportunidade de ouro de assumir o controlo do país. Eles precisam de parecer muito capacitados para iniciar esse tipo de conflito, sabendo (e esperando) que provavelmente ele não irá realmente ter início.

Não nos devemos esquecer de que o atual presidente dos Estados Unidos é o quarto no cargo durante o período da presença militar americana no Afeganistão e que lhe cabe arcar com a culpa pelos problemas na evacuação. Portanto, os talibãs devem parecer "fortes" e "destemidos" quando falam sobre a necessidade de as tropas americanas partirem a tempo, mas também como um partido com o qual o Ocidente pode "cooperar" no futuro como um governo normal no Afeganistão. As suas declarações parecem ser boas, mas é preciso termos presente que a vida normal naquele país está longe de se tornar viável. Milhares de afegãos, que trabalharam para os estrangeiros e não conseguiram sair, serão expostos às prisões e execuções e o mundo vai fingir que nada de novo está a acontecer.

É muito difícil acreditar que os talibãs tenham vencido a guerra apenas com o seu poder militar. Deve haver outros elementos, especialmente entre os membros das autoridades locais, que tornaram isso possível. Os estrategas dos EUA simplesmente não esperavam que as coisas mudassem tão rapidamente. O plano deles era obviamente partir de uma maneira muito mais ordeira e evitar as imagens do caos no aeroporto de Cabul nos meios de comunicação mundiais. Eles estavam muito errados.

A Europa, por seu turno, terá de lidar com os refugiados do Afeganistão por muito tempo no futuro. Além disso, a situação económica naquele país também se vai deteriorar rapidamente, por causa da relutância das organizações internacionais em colocar qualquer coisa nas mãos dos talibãs.

Portanto, o preço real será pago pela maioria das pessoas comuns no Afeganistão, forçadas a viver de acordo com as regras que mudarão de novo dramaticamente as suas vidas. Até à próxima guerra. E se os talibãs não garantirem que as organizações terroristas do passado não reaparecerão nas montanhas do seu país, lá vamos nós outra vez...

É óbvio que o entendimento americano dos atuais ataques terroristas em Cabul leva-os a cooperar com os talibãs para terminarem a retirada dos seus. Infelizmente, parece que, depois da saída dos EUA, tudo começará de novo, incluindo os ataques aéreos aos membros do estado islâmico, na esperança de que os talibãs terminem o trabalho. Será que o farão? É essa a questão crucial que definirá o futuro do Afeganistão.

Investigador do ISCTE-IUL e antigo embaixador da Sérvia em Portugal

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