A saudação nazi de Musk e o erro das democracias

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“O rancoroso uso do impulso mimético explica certos traços dos demagogos modernos. São amiúde descritos como maus actores por serem excessivamente enfáticos. Basta pensar em Goebbels. Tinha o aspecto de uma caricatura do vendedor judeu cuja liquidação advogava. Mussolini fazia lembrar uma prima donna de província ou um cabo da guarda saído de uma ópera cómica. O saco de truques de Hitler dava a impressão de ter sido roubado a Charlie Chaplin. Os seus gestos abruptos e exagerados lembravam as caricaturas que Chaplin fazia dos homens fortes nas primeiras splastick comedies [as ripas paralelas usadas pelos palhaços para darem pancadas ruidosas sem magoar. Por extensão semântica tornou-se a acção burlesca com base na rapidez e na violência da acção]. O seu efeito na audiência parece ficar a dever-se parece ficar a dever-se, em parte, ao facto de representarem impulsos reprimidos que dão a impressão de ir contra os ditames da civilização e patrocinarem a revolta da natureza. Mas o protesto deles não é de modo nenhum genuíno ou ingénuo. Nunca se esquecem de que estão a macaquear. O seu desígnio constante é tentar que a natureza se junte às forças da repressão pela qual essa própria natureza será esmagada.” (pp.131-132)

Perdoe-se a extensa transcrição deste parágrafo do livro de Max Horkheimer, O Eclipse da Razão (Antígona, 2015), mas é oportuno lembrar a tese central desse conjunto de palestras vindas a lume em 1947 em formato de livro. Horkheimer faz o mapa da falência da razão desde o Iluminismo até ao momento em que o nazismo se tornou poder na Alemanha dos anos de 1930.

O conceito de razão dilui-se paulatinamente a partir do momento fundador da modernidade – o enciclopedismo francês, a vitória do deus-Razão, a querela entre Antigos e Modernos – em virtude de uma alteração na ordem de interesses que o homem moderno, industrializado e omnipotente, irá privilegiar: o dinheiro e o pragmatismo. A procura incessante do lucro, a formação, no século XIX, dos primeiros grandes empórios ou monopólios (J.P. Morgan, Rockfeller, Ford) que estabelecem as grandes oligarquias – as famílias dinásticas que sobem a escadaria dos poderes político-económico e mediático-cultural e industrial-militar - tudo isso são consequências claras e sinais inequívocos de que algo de mais profundo atingiu o coração das sociedades demoliberais. O quê, exactamente? A vontade de poder, a vontade de domínio. Para tal ser alcançado, a fórmula é simples: comprar influências, comprar almas, comprar independências. “Tentar que a natureza” dos ressentidos e dos ambiciosos, “se junte às forças da repressão” (as oligarquias) “pela qual essa própria natureza” (desse ressentidos e ambiciosos) “será esmagada”.

Cravado no coração das democracias está, pois, o espinho da ambição desmedida, do poder que se exerce em nome de grandes ideais, mas esconde (ou tem como inevitabilidade) formas de despotismo, de controle das massas, de exploração. A ironia da chegada de Trump à Casa Branca está, pela segunda vez, no seguinte: em os democratas (dos Cliton a Obama, dos Kennedy a Biden e Harris) não terem compreendido que Trump e os oligarcas encarnam o que o homem-massa americano deseja para si: a natureza, em vez da civilização. Poder, dinheiro, em vez de ilustração, ou cultura.

Elon Musk, mais do que nenhum outro, prefigura esse poder animalesco, ou burlesco, que reenvia aos grandes gestos pantomineiros dum Goebbels ou dum Hitler, ou dum Mussolini. Em vez da liberdade, o progresso assente no novo deus, esse homo tecnologicus que, como um ídolo, ensaia a nova linguagem: os gestos retumbantes. Eis Musk, o da saudação nazi em plena tomada de posse de Trump. É justamente aquele projecto de opor a um ideal de civilização, de democracia e de liberdade dos povos, um outro caminho em que o homem vencedor é alguém que age de forma selvática, egoísta e em nome só dos seus interesses, concretizando a potência que uma natureza não educada, não civilizada, o que explica esta figura sinistra, esta máscara repetida de outras eras monstruosas. O oligarca da Tesla, o financiador da Extrema-Direita alemã, o assaltante do espaço sideral, esse Elon, pode invocar Roma. Não desconhece, decerto, que a suástica ou a águia imperial, bem como a saudação nazi simbolizam – e o simbolismo revela uma intenção, uma visão de mundo – um projecto de poder, de comando, de domínio.

As democracias europeias, dependentes do império digital americano, dependentes militarmente desse país que virou as costas a instituições e acordos como a OMS e o Acordo de Paris, terão, necessariamente, de compreender quem são estes oligarcas – da Rússia aos States, da China aos que, na Europa, se preparam para esventrar a União Europeia. Como compreender? Lendo as estratégias do fascismo, âncora ideológica e natural de toda a oligarquia. Vendo que a Europa, para enfrentar o cerco que do Oriente ao Oeste está montado, tem de se erguer da sua secular cobardia e indigência e socorrer-se da memória cultural para se afirmar enquanto continente bastião das liberdades e último reduto da justiça social. É isso possível com as vitórias dos partidos da extrema-direita um pouco por toda a parte? Não será fácil, mas é contra o eclipse da razão que os intelectuais europeus, muitos políticos, empresários com sensibilidade social, instituições como a Universidade, os Tribunais e mesmo a Igreja, terão de cerrar fileiras contra o deus único que anima, alimenta e energiza a ira dos oligarcas do tecno-fascismo contra os povos: o deus-dinheiro. A Europa de 2025 não pode esquecer as lições da Europa de 1933, de 1938 e de 1939.

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