A Rússia de Putin não para de surpreender pela negativa: mais um atentado grave ao Direito Internacional Humanitário

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Um ataque, com 38 mísseis de diversos tipos, na manhã do dia 8 deste mês de julho, vindos de diversas direções do território russo e da Crimeia, atingiram Kiev e outras cidades da Ucrânia. Se a defesa aérea ucraniana tivesse tido a capacidade de destruir todos estes mísseis, muito provavelmente não estaríamos a criticar a Federação Russa pelos resultados deste ataque. Mas, como só conseguiram destruir 30 em 38 mísseis, houve 8 que conseguiram passar e aí percebemos que, pelo menos um míssil de cruzeiro, foi atingir diretamente o Hospital Pediátrico de Kiev, destruindo uma parte substancial dessa infraestrutura e provocando mortos e feridos, todos civis e crianças. Foi atingida, também, uma maternidade na capital, ainda em circunstâncias que as autoridades ucranianas estão a apurar, mas que poderá ter resultado dum impacto direto de outro míssil.

Este ataque, que deverá ter constituído a retaliação que Vladimir Putin prometeu à Ucrânia, por causa do uso, em território russo, de armamento ocidental, constituiu-se como uma violação muito grave do Direito Internacional Humanitário e dos Conflitos Armados, neste ano em que comemoramos os 75 anos das Convenções de Genebra.

Não é a primeira vez que as Forças Armadas russas atingem infraestruturas de saúde ucranianas, o que já tinha acontecido nos bombardeamentos da fase inicial da guerra na Ucrânia, essencialmente fruto do uso indiscriminado da artilharia e da aviação. Muitas dessas ações ainda estão sob investigação, mas este último caso, em Kiev, sobre um hospital pediátrico, revela a completa irrelevância que as regras do Direito Internacional têm para a atual liderança russa, que não confundimos, naturalmente, com o povo russo.

Além da natureza chocante destes ataques, ressalta que a liderança autocrática russa expressa, também desta forma, a sua oposição a esta ordem internacional baseada em regras e no Direito Internacional, e onde as quatro Convenções de Genebra se inserem, como pilares fundamentais do Direito Humanitário e dos Conflitos Armados, resultantes duma conferencia diplomática que se realizou em Genebra, entre abril e agosto de 1949, na sequência do fim da Segunda Guerra Mundial. Foram assinadas em 12 agosto desse ano e estão hoje ratificadas por praticamente todos os Estados, incluindo a Federação Russa.

Com a invasão da Ucrânia em 2022 a Rússia infringiu também a Carta das Nações Unidas, outra das fontes importantes do Direito Internacional, sobre o preceituado acerca da soberania dos Estados e a inviolabilidade das fronteiras.

Vemos, portanto, que todas estas ações se inserem numa estratégia mais alargada de subversão da Ordem Internacional instituída após o fim da Segunda Guerra e consolidada com o fim da Guerra Fria, onde a Rússia não está sozinha, com aliados de outras autocracias, que pretendem substituir o primado do Direito pelo primado do uso da Força, nas relações internacionais.

Tem-se vindo a desenhar uma nova Guerra Fria, onde estas potências autocráticas pretendem, não só uma redistribuição do poder na atual ordem internacional, mas também um novo desenho das regras desta nova ordem, onde o uso da força será a pedra de toque para o restabelecimento de zonas de influência, com menorização da soberania dos países localizados dentro dessas zonas. Será um regresso aos tempos do imperialismo territorial, baseado em filosofias nacionalistas para a reorganização política e demográfica dessas áreas de influência, feito naturalmente à revelia das suas populações e contra as regras da autodeterminação dos povos, prescritas na Carta das Nações Unidas. No caso da Rússia, essa ação tem sido baseada em referendos locais de legalidade mais que duvidosa, com a incorporação, na Federação, de zonas de soberania ucraniana.

E a Rússia está na linha da frente desse desiderato revisionista onde, com a invasão da Ucrânia, tem posto em causa todos os pilares do Direito Internacional, seja na sua componente política seja na sua componente humanitária.

E tem com ela um conjunto de aliados pouco recomendáveis, como são o caso do Irão e da Coreia do Norte. A China, se por um lado tem sido uma aliada estratégica da Rússia, tem, por outro, sublinhado a questão da inviolabilidade da soberania dos Estados, numa abordagem híbrida a este movimento de alteração da atual ordem internacional, parecendo mais apostada na redistribuição do poder do que na completa subversão das regras, em especial as que resultam da Carta das Nações Unidas. Mas veremos como se irá posicionar no futuro e até onde levará o apoio à Rússia de Putin.

Esta tentativa, de alteração radical da ordem internacional, terá de ter uma resistência tenaz e articulada das democracias de todas as latitudes, seja no plano político-diplomático, seja no plano económico, seja, no limite, no plano da Segurança e Defesa. Esta resistência exige estratégia, nas suas variadas dimensões, do planeamento à ação. E exige-se também comunicação estratégica no sentido de contrariar as narrativas russas, normalmente oportunas e bem elaboradas, mas eivadas de falsidade e desinformação. Esta comunicação é importante para mobilizar parceiros de todas as latitudes, para se construir a perceção, que muitas vezes não é clara em muitos países, de que eles poderão vir a ser os principais alvos de ataques à sua soberania, numa sociedade internacional sem regras.

Tempos difíceis, que exigirão resiliência e ação estratégica adequada para a proteção das regras básicas do Direito Internacional. Não sendo assim, a Ordem Internacional transformar-se-á em desordem, com sérios impactos para a segurança global.

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