A roleta americana: Harris ou Trump?

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Se eu fosse eleitor nos EUA, não hesitaria um segundo. O meu voto iria obviamente para Kamala Harris. Saberia, sem sombra de dúvidas, que cerca de metade dos eleitores votaria pelo outro candidato. Mas lembrar-me-ia igualmente que um dos gigantes da literatura americana, Mark Twain (1835-1910), costumava dizer que nenhum tipo de argumentação, por mais evidente que seja, consegue abrir os olhos de um idiota. Eu acrescentaria tampouco a um radical. Que o país esteja assim, por culpa de uns fanáticos e sobretudo de muitos oportunistas que sabem que vender mentiras e desassossego dá muito dinheiro e mais poder, é, contudo, uma realidade que tem de ser considerada. Ao contrário, apostar em Harris é acreditar no futuro. Parafraseando Mark Twain de novo, é preferível ser-se um otimista que por vezes se engana, a ser-se um pessimista que tem sempre razão. Por isso, recomendaria o voto em Kamala Harris.

A verdade é que a dias do decisivo 5 de novembro ninguém consegue arriscar qual será o resultado, nem mesmo os gurus políticos que se gabam de raramente falhar nas suas profecias. Se utilizarmos os critérios habituais - a apologia do racismo e do machismo, o medo dos estrangeiros pobres, e a fantasia de uma vida mais próspera - a roda parece pender para o campo de Donald Trump. O homem sabe jogar com essas roletas e percebe que a política populista é feita de slogans de sarjeta, de chavões fáceis de entender por gente simples e de intrujices incendiárias.

Todavia, esta eleição é mais complexa, tem outras variáveis em jogo: a péssima imagem de Trump junto de uma boa parte do eleitorado, um político incoerente, incompetente, desonesto e vingativo; o direito ao aborto e a liberdade reprodutiva das mulheres; o respeito pelas minorias; a serenidade de Harris, que conseguiu o apoio de grandes personalidades públicas, incluindo do espectro Republicano. A tudo isto convém juntar uma nova geração de eleitores, cujas escolhas são para já difíceis de prever.

Todas as presidenciais, nas nossas democracias, são fortemente influenciadas pela imagem que se consegue fazer passar do candidato. As redes sociais e as televisões têm um poder enorme para fazer e desfazer qualquer pretendente. O critério é o das audiências, o que elas significam em termos de negócios. Um concorrente mais frágil, por razões de idade e de saúde, é implacavelmente atacado. Já outro, como Donald Trump, a contas com a justiça, vigarista, mas com as plataformas sociais a seu favor e inteiramente dominadas por grupos de bilionários, passa pelas malhas da opinião dos seus adeptos com marcas positivas, assentes na repetição de falsidades à exaustão. Elon Musk, o dono do X, antigo Twitter e de um conglomerado de empresas de ponta, tem uma enorme equipa que produz diariamente dezenas de tuítes, metade a inventar maravilhas sobre Trump e os outros a demolir Harris.

A aliança dos bilionários trumpistas, da internet social e das televisões tabloides está, como se pode observar, a procurar matar de modo acelerado o debate político, a liberdade de opinião e a democracia. Uma boa parte das pessoas gosta de palhaçadas e vê as campanhas políticas como um espetáculo, um circo, uma oportunidade de escapar à rotina enfadonha do dia-a-dia e à conversa insonsa e ao jargão incompreensível das elites com lugar cativo nos ecrãs das televisões. O populismo alimenta-se do sentimento de frustração, de desapontamento e da impotência dos cá de baixo face aos lá de cima.

O passo seguinte está a ser a utilização em massa da Inteligência Artificial, que cria legiões de falsos apoiantes, como as fábricas de bots russos já fazem para engrandecer os comentadores políticos que aparecem nas televisões ocidentais e que lhes são servis. O cidadão votará influenciado pelos números gigantescos fabricados pelos bots. 

Não sendo americano, não poderei votar pela candidata que me parece equilibrada, um equilíbrio que tanta falta faz num mundo que muitos querem empurrar para o caos. Mas enquanto europeu e partidário de uma legalidade internacional ameaçada por Vladimir Putin, Viktor Orbán e outros ditadores e líderes excêntricos fora da Europa, bem como por grupos terroristas da pior inspiração medieval, preciso de ver na Casa Branca alguém racional e de confiança. Embora saiba que a roleta é um jogo de alto risco, recuso que da democracia se possa dizer que era uma vez na América. Por isso, deixo hoje e aqui uma aposta no futuro, com otimismo.

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