A redundância da coragem
Este título pedi-o emprestado a um livro de 1991, do escritor (antes jornalista) Timothy Mo. É um livro sobre Timor-Leste sob ocupação indonésia, publicado muito antes de os resistentes das montanhas poderem largar as armas e no mesmo ano em que as imagens do massacre no Cemitério de Santa Cruz, captadas por um jornalista britânico (estávamos ainda muito longe dos telemóveis com câmara e dos lives na internet), finalmente chamaram a atenção do mundo para o que se passava naquele pequeno território.
É um livro amargo, raivoso - pela indiferença do mundo e pela traição do colonizador, Portugal - e, simultaneamente, um hino aos que, sob a brutal e incessante opressão dos ocupantes, não desistiam de lutar, mesmo quando a luta parecia tão sem esperança e a coragem tão deslumbrante quanto inútil.
Li-o em 1993, quando era assim mesmo, quando parecia que lutar e morrer pela ideia de Timor independente era de um romantismo suicidário: menos de meio milhão de habitantes (eram 700 mil antes da ocupação, em 1975) contra um opressor de mais de 200 milhões e a realpolitik internacional que, rindo a caminho do banco, fechava olhos às atrocidades.
A Redundância da Coragem termina com a fuga do narrador - um gerente de hotel de origem chinesa e gay - para Nova Iorque, depois de corromper um militar indonésio. Nas últimas páginas, Mo, que ao longo do livro faz o protagonista passar, por acidente, de observador a participante, escreve: "Há sempre alguém que avança. Mesmo uma sociedade tão minúscula como a nossa tem a capacidade de produzir um vasto número de gente superior. Não existe isso a que se dá o nome de um herói - só pessoas normalíssimas a quem são exigidas coisas extraordinárias em terríveis circunstâncias - e que estão à altura. Os malaios [é assim que denomina os indonésios] podem ter incendiado o campo, e pensar que exterminaram todas as criaturas nele, mas há sempre uma marmota que se salva. Há sempre uma."
É um final estranho - o do homem que foge mas garante que há quem não fuja, que há sempre quem fique e se erga; o de quem sabe que não tem mais força, que não pode mais, mas crê numa espécie de milagre, não o da vitória, mas o da não rendição.
Lembrei-me deste livro e da sua peculiar mistura entre cinismo e fé, entre descrença e entrega, quando em 24 de fevereiro as tropas russas entraram pela Ucrânia e Zelensky, no discurso dessa madrugada, jurou aos russos que se viessem veriam os rostos dos ucranianos e não as suas costas. E lembro-me dele quando vejo as insurrectas iranianas a queimar os hijabs, a expor os seus longos cabelos, a dançar (também dançar em público é ali proibido às mulheres), e, com os homens que a elas se juntaram no desafio aos teocratas, encher as ruas da sua terra - "Esta é a minha terra, não vou a lado nenhum, vocês é que têm de ir", responde, num vídeo posto a circular no Twitter, uma delas ao clérigo que lhe diz para sair do país se não aceita as suas leis misóginas - exigindo liberdade e o fim do regime dos ayatollahs.
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Lembro-me sempre deste livro quando vejo lutas desiguais, aparentemente fadadas à derrota do mais fraco, do oprimido, do invadido, do ocupado, e coragens tão assombrosas como as dos que em Timor-Leste nunca se renderam - mesmo quando nem eles acreditariam poder ter outro destino senão a tortura, a morte e o esquecimento.
Não sabemos quantos ucranianos morreram desde 24 de fevereiro - a combater, bombardeados, assassinados, de frio, de fome, de doença por não terem acesso a medicamentos ou hospitais - em resultado da invasão. Não sabemos quantas iranianas e iranianos morreram desde que começou esta revolta (e nas outras que em 2009 e 2011 foram esmagadas), nem quantas e quantos estão nas prisões dos mullahs por lutarem por uma sociedade livre, uma sociedade em que as mulheres não sejam presas e espancadas por não usar um pano a cobrir o cabelo, por se arrogarem decidir o que vestem, o que fazem, a quem amam, em que creem.
Mas sabemos, como sabem ucranianos e iranianos, que a probabilidade é de que muitos mais morram. Muitos mais cujos nomes e rostos só os próximos conhecem, cuja falta só os próximos chorarão, muitos mais que não terão, para os celebrar, sequer a glória fugaz de um vídeo partilhado nas redes sociais e nas TV, talvez nem um túmulo onde depor flores.
Para quê, então? O que os leva a arriscar tudo, a erguer-se no campo queimado, uma e outra vez?
Suponho que quem está na luta - e não consigo sequer começar a entender o que é preciso para estar nesse lugar, o dos que nos campos e cidades da Ucrânia defrontam os tanques e bombas daquele que se proclama como um dos mais poderosos exércitos do mundo e das que nas ruas do Irão avançam contra os disparos da polícia - não pensa na coragem que tem, nem se esta chega para vencer.
Pensa e sente que tem de ser.
Pensá-lo-á a mulher que enfrenta a barbárie religiosa de cabelos descobertos, sabendo que pode ser presa, batida, torturada, violada, assassinada (como, acredita-se, foi a curda Mahsa Amini, de 22 anos, cuja morte acendeu esta revolta, ao ser detida pela "polícia da moralidade" por ter o lenço/hijab "mal posto"). Que é aquele o seu lugar, o seu destino - o de dizer, altiva, "estou aqui, venham; quantos exércitos sejam, aqui estarei. Perdi-vos o medo."
E que só se tem a ela e às outras como ela, e aos que se lhes juntaram, armados apenas com a sua fúria. Que não virá salvação, auxílio, de nenhum lugar, que não terá sequer, como os ucranianos têm, o financiamento e as armas dos que assistem.
Que a sua luta, por mais justa e necessária, nunca levou a comunidade internacional a pôr sequer a possibilidade de dar ao Irão, e aos países que à imagem do Irão codificam as mulheres como criaturas dos homens - a começar pela Arábia Saudita -, o tratamento que deu à África do Sul do apartheid (as sanções que castigam o Irão, sabemo-lo, nada têm a ver com a sua brutalização das mulheres).
Que daqui, deste lado, só terá, no máximo, o nosso olhar, a nossa reverência, as nossas lágrimas. As orações laicas de quem pede, de joelhos, que lhes seja dada a vitória, honrado tamanho desassombro.
Tão pouco, nada - porque, suspeita-se, para lhe mudar o destino seria preciso algo tão terrível como o massacre que fez o mundo acordar para Timor; não porque foi um massacre, mas porque foi visto. E ela, como os mullahs, sabe-o.
Jornalista