A que se deveu a Guerra Civil
Claro que a Guerra Civil se deu por causa da escravatura, e todos sabiam isso nessa altura. Não, Nikki Haley, não foi por causa de direitos dos estados, exceto na medida em que os estados do Sul estavam a tentar forçar os estados do Norte a apoiar a manutenção da escravatura - algo que, como passarei a explicar, se repercute na atual luta contra o direito ao aborto.
Por conseguinte, Haley merece bem a crítica que recebeu por se recusar inicialmente a reconhecer o óbvio numa paragem da campanha, na semana passada.
Porém, poderá ser vantajoso aprofundar um pouco mais os antecedentes envolvidos. Em primeiro lugar, por que é que existiu a escravatura? Por que razão ficou confinada a apenas uma parte dos Estados Unidos da América? E por que estavam os proprietários de escravos dispostos a encetar uma guerra para defender a instituição, apesar de o abolicionismo ser ainda um movimento pouco relevante e de não enfrentarem um risco iminente de perder os seus bens móveis?
Permitam-me que comece com uma afirmação que pode ser controversa: o sistema de escravatura americano não foi motivado pelo racismo, em primeira instância, mas sim pela ganância. Os proprietários de escravos eram racistas e usaram o racismo quer para justificar o seu comportamento, quer para tornar a escravatura de milhões de pessoas mais sustentável, mas foi o dinheiro e a ganância desumana que impulsionou o sistema racista.
Em 1970, o economista Evsey Domar do Massachusetts Institute of Technology publicou um artigo clássico intitulado The Causes of Slavery or Serfdom: A Hypothesis (As Causas da Escravatura ou Servidão: Uma Hipótese), que começa com uma observação histórica que deve ter surpreendido a maioria dos leitores. Todos sabiam que a Rússia do tempo dos czares era uma nação onde os servos estavam amarrados à terra; mas a servidão na Rússia, como se veio a verificar, não era uma antiga instituição que remontava às profundezas da história medieval. Pelo contrário, tinha sido introduzida nos séculos XVI e XVII, depois de a pólvora dotar a infantaria dos camponeses de supremacia militar sobre os arqueiros a cavalo nómadas, permitindo que o Império Russo se expandisse para novos territórios, vastos e férteis.
Como Domar realçou, não há razão para submeter um trabalhador à servidão ou à escravatura (não é bem a mesma coisa, mas deixemos isso para outra ocasião) se a mão-de-obra abundar e a terra for escassa, pelo que o valor que o trabalhador poderia auferir em caso de fuga ultrapassaria por muito pouco o custo da subsistência. Porém, se a terra se tornar abundante e a mão-de-obra escassa, a classe dominante pretenderia manter os trabalhadores no local, de forma a conseguirem extrair pela força a diferença entre o valor do que cada trabalhador pode produzir - em termos rigorosos, o seu produto marginal - e o custo de os manter vivos.
Daí o aumento da servidão à medida que a Rússia se expandia para Leste, e a ascensão da escravatura à medida que a Europa colonizava o Novo Mundo.
Na verdade, o verdadeiro enigma histórico é por que é que salários elevados nem sempre levaram à escravatura ou servidão generalizada. Como o próprio Domar salientou, a servidão no Ocidente tinha-se, mais ou menos, desvanecido por volta de 1300. A Europa Ocidental tinha excesso de população em virtude das tecnologias da época, o que, por sua vez, significava que os latifundiários não precisavam de se preocupar com que os seus arrendatários ou trabalhadores saíssem para procurar rendas mais baixas ou salários mais elevados. Todavia, a Peste Negra levou a população a cair a pique e os salários a subir vertiginosamente. Na verdade, durante algum tempo, os salários reais na Grã-Bretanha atingiram um nível que só se voltaria a verificar por volta de 1870.
Ainda assim, não se verificou o retorno da servidão, por razões que ainda não estão totalmente clarificadas. Apenas uma ideia, manter pessoas cativas a fim de roubar os frutos do seu labor não é fácil. (Na Rússia, os servos fugitivos eram um problema significativo, como o eram os escravos fugitivos e rebeldes nos Estados Unidos da América - a Segunda Emenda tratava, sobretudo, de facilitar a repressão dos escravos. Em 1848, uma rebelião de escravos levou à emancipação na Ilha de St. Croix, onde o presidente Biden passou as suas mais recentes férias.) O que nos leva à história da Guerra Civil.
A mão-de-obra era escassa nos Estados Unidos do período pré-Guerra Civil, pelo que os trabalhadores auferiam salários elevados em comparação com os padrões europeus. A Austrália, outra nação com abundância de terras e mão-de-obra escassa, equiparava-se, mais ou menos, aos Estados Unidos da América. Em todos os outros lugares, os trabalhadores ganhavam muito menos.
É óbvio que os proprietários de terras não queriam pagar salários elevados. Nos primeiros dias da colonização, muitos europeus vieram como trabalhadores assalariados, na verdade, como servos temporários. Contudo, os proprietários de terras viraram-se para os escravos africanos, que ofereciam duas vantagens aos seus exploradores: como tinham uma aparência diferente dos colonos caucasianos era difícil fugirem, e os brancos pobres não sentiam muita empatia por eles, quando podiam ter percebido que tinham muitos interesses em comum. Obviamente, os sulistas caucasianos também encaravam os escravos como propriedade, não-pessoas, pelo que o valor dos escravos entrava no balanço contabilístico deste sistema movido pela ganância.
Assim, novamente, na dinâmica institucionalizada, os gananciosos proprietários de escravos utilizavam e perpetuavam o racismo para sustentar o seu reinado de exploração e terror.
Todavia, pelo facto de a escravatura nos EUA se basear na raça, existia um suprimento limitado de escravos, e, como se veio a verificar, os escravos fizeram mais pelos seus amos na agricultura do Sul do que em outras ocupações ou locais. As pessoas negras no Norte eram vendidas a jusante aos proprietários de plantações do Sul que mais pagavam por eles, pelo que a escravatura se tornou uma instituição específica de uma parte do país.
Como tal, os escravos tornaram-se um ativo financeiro extremamente importante para os seus proprietários. As estimativas do valor de mercado dos escravos antes da Guerra Civil variavam bastante, mas valiam claramente muito mais do que a terra que cultivavam e podem muito bem ter sido responsáveis pela maior parte da riqueza do Sul. Inevitavelmente, os proprietários de escravos tornaram-se defensores acérrimos do sistema subjacente à sua riqueza - defensores ferozes e, frequentemente, violentos (recordemos a Guerra de Fronteira, no Kansas), porque nada enfurece mais um homem do que a sua própria suspeição, provavelmente inconsciente, de que está no caminho errado.
De facto, os proprietários de escravos e os seus defensores atacavam qualquer um que fizesse a mais pequena sugestão de que a escravatura era algo negativo. Como Abraham Lincoln afirmou no seu discurso na Cooper Union, os interessados na escravatura exigiam que as pessoas do Norte “deixassem de chamar a escravatura como errada e se unissem a eles em apelidá-la de certa.”
Todavia, as pessoas do Norte nunca o fariam. Existiam relativamente poucos norte-americanos a pressionar no sentido da abolição a nível nacional, mas os Estados do Norte, um por um, aboliram a escravatura nos seus próprios territórios. Este não foi um ato tão nobre como poderia ter sido, se tivessem confiscado a propriedade dos esclavagistas, em vez de esperarem até que os escravos fossem vendidos. Ainda assim, é mérito dos eleitores o facto de que consideravam a escravatura repugnante.
Tal constituía um problema para o Sul. Qualquer um que acredite ou finja acreditar que a Guerra Civil era sobre os direitos dos Estados deve ler as memórias de Ulysses S. Grant, que assinala que a verdade era quase o oposto. Na sua conclusão, Grant mencionou que manter a escravatura era difícil quando grande parte da nação era constituída por Estados livres, pelo que os Estados esclavagistas, na verdade, exigiam o controlo sobre políticas de estado livre. “As autoridades policiais do Norte tornaram-se caçadores de escravos, e os tribunais do Norte tinham de contribuir para o apoio e proteção da instituição”, escreveu ele.
Isto deveria soar familiar. Desde que o Supremo Tribunal dos EUA reverteu a decisão do caso Roe vs. Wade, os Estados que baniram o aborto tornaram-se cada vez mais exaltados quanto à possibilidade de as mulheres viajarem para Estados onde os direitos ao aborto se mantêm. É óbvio que a direita acabará por impor uma proibição do aborto a nível nacional, se o conseguir.
Durante muito tempo, o Sul conseguiu realmente exercer esse tipo de controlo nacional. Contudo, a industrialização, gradualmente, mudou o equilíbrio do poder dentro dos Estados Unidos da América, do Sul para o Norte. O mesmo aconteceu com a imigração, com muito poucos imigrantes a deslocar-se para Estados esclavagistas.
A guerra aconteceu porque as pessoas cada vez mais empoderadas do Norte, segundo Grant, “já não estavam dispostas a desempenhar o papel de polícias para o Sul” na proteção da escravatura.
Por isso, sim, a Guerra Civil deveu-se à escravatura - uma instituição que existiu apenas para enriquecer alguns homens, privando outros da sua liberdade. E não existe qualquer desculpa para quem finja que existiu qualquer coisa de nobre ou até mesmo defensável na causa do Sul: a Guerra Civil travou-se para defender uma instituição absolutamente vil.
*Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul e candidata à nomeação republicana à Presidência dos EUA, disse que a Guerra Civil americana tinha sido sobre a interferência do Governo na vida das pessoas e nos “direitos” dos Estados a governarem sem imposição do Governo de Washington. Era uma transposição anacrónica do atual debate nos EUA sobre as competências dos Governos estaduais e do Governo Federal em matérias como o direito ao aborto. Haley não referiu a escravatura como razão primeira da Guerra Civil.
Paul Krugman é colunista do New York Times, professor da Universidade da Cidade de Nova Iorque e Prémio Nobel da Economia
Este artigo foi publicado originalmente em The New York Times.