A pulsão de morte do capitalismo (notas sobre a realidade dos actos)

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Foi Sigmund Freud quem definiu os dois princípios que, por assim dizer, regem a vida: Eros e Thanatos. De um lado o princípio erótico, vital e do outro o princípio de todos os organismos – o encaminhamento para a morte. Quer dizer: são dois os pratos da balança: prazer e dever. Ou, noutra variação deste mesmo tema – a vida – o princípio da realidade versus o princípio da idealidade. Entre teoria e prática, vivemos. O que no livro de Byung-Chul Han é de sublinhar é simples: a relação directa entre a pulsão de morte e o capitalismo final, isto é, esta última fase do capitalismo que pode assumir várias definições, ou cobre diversos espectros semânticos: globalismo, pós-modernismo, tecno-ciência. Se quiséssemos cunhar um neologismo, talvez este servisse: tecnoglobalismo. Se houver hipótese de uma torção de sentido, tendendo a fazer-se já a crítica a esta "economia que mata", como bem viu o Papa Francisco, então poderemos avançar com um conceito que faz ressoar as teses de Antonio Gramsci (1891-1937) à luz da sua teoria da "hegemonia cultural" e considerar que vivemos em pleno "tecnofascismo". É esta, de resto, uma das linhas de leitura deste livro imprescindível do autor de A Sociedade do Cansaço: o sistema ideológico da globalização, este capitalismo sem margens e sem horizonte definido a não ser o do consumismo eterno, feito de permanente acumulação, é mais do que um sintoma, a prova de que o capitalismo obedece, desde sempre, à pulsão de morte.

Na Europa de Ursula e de Costa, na NATO do Sr. Mark, nos EUA do triunfo do trumpismo, é justamente a ideia de morte que anima os planos de acção de uma classe política que, obedecendo aos oligopólios da Internacional das Tecnologias, e em conluio com o complexo industrial-militar, fará com que os povos europeus vivam, nos próximos anos, nas próximas décadas, numa pobreza crescente. Uma das teses do filósofo sul-coreano é esta: "aquilo a que chamamos crescimento é uma excrescência que destrói o tecido social". O capitalismo assente na dominação da tecno-ciência tem já uma só promessa: metastizar, como um cancro, e com incrível velocidade e eficácia, a ideologia da morte. A crença perigosíssima de que a IA irá resolver e revolucionar o mercado de trabalho é a panaceia que directa ou indirectamente políticos, comentadores do jornalismo cínico e decisores empresariais decidiram vender no mercado global das ilusões fáceis. Mas perguntemo-nos, com Byung-Chul Han: quantos milhões irão para o desemprego quando as máquinas nos substituírem? Que ditadura-cyborg está em curso? Que mentalidade e que relações humanas podem florescer no meio do deserto de um real sem paixão, desumanizado e sem hipótese de utopia? Do fim da educação tal como a conhecemos, feita de relações com rosto e coração, ao futuro das cidades com hordas de desempregados vegetando ou vivendo num regime de respiração assistida, o que podermos esperar da ideologia-Musk e das indústrias digitais? Se Elon despediu milhares que trabalhavam para o Bem Público, imagine-se o que, com a ajuda da IA, irá fazer (e com Musk todos os patrões e donos disto tudo) no sector privado.

O que temos hoje na Europa, a pretexto do perigo russo e da iminência de uma invasão da Europa pelos soldados de Putin, é, no fundo, uma estratégia de sobrevivência não da Europa e dos seus povos, mas dos tecnocratas que temem perder os seus privilégios de casta. A guerra, o rearmamento no Velho Continente nada mais é que uma forma de a oligarquia europeia, em face da desvantagem competitiva com os EUA e a China, acelerar – em clima de economia de guerra – modos de produção que visem fazer lucrar biliões aos que pagam míseros tostões. Não interessará muito se Trump, com a sua impossibilidade cognitiva de compreender as relações globais, irá apostar mais ainda nesta política tarifária suicida. A questão coloca-se à Europa: o rearmamento traduz-se no desinvestimento das políticas públicas, dê por onde der. É da História. Não há equívocos aqui. Em Portugal, com o hábito de os nossos políticos julgarem que nada do que se passa lá fora nos atinge, um almirante candidato a presidente e ungido em Salvador-Pátrio por uma comunicação social que há muito vendeu a alma, tem apenas como eixos ideológicos o envio dos nossos jovens para a guerra, pois o país tem "responsabilidades" com os seus parceiros. A incúria desta geração de políticos (entre 40 e os 60 anos, mais coisa menos coisa) ficará lendária se houver seriedade no futuro. De Lisboa a Bruxelas, de Madrid a Estrasburgo, as democracias europeias têm para oferecer às massas alienadas o negócio da guerra em nome dos "direitos humanos" e das "liberdades". A pulsão de morte passa por aqui: os efeitos devastadores de uma guerra futura na Europa, que arrastará todo o mundo, são fruto dos efeitos devastadores deste capitalismo final. O instinto de morte (penso no olhar de Ursula e no inglês falado de Costa, sempre de olhar ambicioso e, agora magro, com traços de tecnocrata feliz, da moda e penso na subserviência de Mark, cuja cerviz tem é já oblonga), a acumulação de bens supérfluos por parte das massas que, nos centros comerciais, alimentam a máquina do consumo e, metidas em casa, fornece dados para os futuros Pides e KGB que nos controlarão as vidas, isso é o prelúdio de um quotidiano que está para breve.

Não estamos só perante o esgotamento do projecto europeu à custa da traição dos valores que nasceram com a Revolução Francesa e que, sistematicamente, empresariado e burguesia violaram. Esmagar os povos fazendo-nos acreditar que a única hipótese que existe para a Europa é a guerra e a digitalização da vida (e fechamento em casa, todos num online predatório), que a IA tudo irá dar-nos, essa é a propaganda mais vil. PS e PSD, com a sua crónica propensão para um europeísmo serôdio, já não têm Mário Soares nem figuras imparciais e críticas. Mas em 2008, e até antes, Soares avisou-nos sobre a NATO. Para ele era já uma ameaça à paz mundial. Com este livro de Byung-Chul Han, se os políticos lessem, talvez fosse possível fazer da campanha eleitoral um momento raro de pensamento entre nós: somos escravos de uma ideologia tentacular, de um capitalismo de vampiros e a UE destes tecnocratas que se escolhem sem que nós os escolhamos é apenas uma organização que olha para os povos europeus e vê 800.000.000 de euros. A pulsão de morte é característica de todo o organismo. As sucessivas crises que, desde 2008 temos atravessado, confirmam o paroxismo deste corpo doentíssimo que a classe política se prepara para esventrar numa espécie de sangria que promete curar o paciente em coma. Ursula e os seus acólitos – que mentem sobre a Ucrânia e ignoram o genocídio perpetrado por Israel sobre a Palestina – serão alguma vez julgados? Adeptos do capitalismo e do tecnofascismo, eles sabem já o fim da História. E todavia… "Mas cuidado, Milady, não se afoite, / que hão-de acabar os bárbaros reais; / E os povos humilhados, pela noite, / Para a vingança aguçam os punhais."

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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