A poética da voz

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Diz-se que os olhos são o espelho da alma, mas a voz também poderia ser. Não?

Uma frase ouvida tem muito mais carga emocional que uma frase lida. Quando lemos tentamos adivinhar a voz que o autor deu à personagem, mas não a ouvimos. Não a experimentamos. Não a sentimos na pele.

O mesmo se passa na música.

As vozes ouvidas são parte da canção. Letra, melodia e voz.

Há vozes que são imortais. Mas usualmente quando falamos de uma voz imortal, falamos de uma voz que já aconteceu. Que já deu nome a uns versos numa canção ou a umas deixas num filme. Madonna será sempre Madonna, até mesmo quando desaparecer a sua voz irá perdurar nas canções que já cantou. Robert De Niro será sempre Robert De Niro, nos filmes onde atuou.

Há vozes que são tão características, tão coladas a determinadas personagens que estão a ser imortalizadas para o que aí vem e não para o que já aconteceu. Falo de Darth Vader. Para os mais distraídos, falo de James Earl Jones o ator que dá voz ao vilão criado por George Lucas para a saga Star Wars (1977).

James Earl Jones assinou recentemente um contrato de cedência da sua voz, guardando-a na gaveta das vozes imortais que nos vão deliciar pelo tempo que quisermos. Aquele que em 1977 deu pela primeira vez voz ao vilão que no enredo foi reconstruído através da tecnologia, 45 anos depois, já a gozar da sua reforma, cede a sua voz para que esta seja reconstruída, também pela tecnologia, de modo a continuar a dar vida ao vilão do lado negro da Força muito para além da sua morte.

Será uma voz algorítmica que aprende com a voz original e a reproduz através de outras palavras que o seu proprietário genético nunca disse. Esta reprodução imita o tom, o sotaque, a entoação e combina-os em linhas e deixas que são discorridas de forma harmoniosa e poética, iludindo o ouvinte e disfarçando cada vez mais a ténue linha entre realidade e fantasia.

Se há personagens que não morrem, a partir de agora, há vozes que também não. Iremos ter as mesmas personagens que serão vestidas por outros, mas que usam as vozes das primeiras. E isso é fantástico!

Mas... há sempre o lado "negro" da moeda.

Com que voz? Que voz? A voz de quem? Estas são verdadeiramente as perguntas que interessam.

Quem vai dar voz, por exemplo, aos filmes de animação? Atores ou algoritmos? Vozes orgânicas ou vozes tecnológicas?

Muita voz se vai ouvir sobre o assunto. Umas concordantes certamente, mas outras nem por isso.

Designer e diretor do IADE - Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação da Universidade Europeia

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