A percepção da revolução dos cravos em Goa

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Se alguém me perguntar como percepcionei e vivi o 25 de Abril, em Goa, tenho de responder, com sinceridade, de forma honesta e séria, que não sei nem tenho como saber, porque nessa altura não me encontrava em Goa, mas em Lourenço Marques, hoje Maputo. 

E se, porventura, perguntar aos amigos, residentes em Goa, como percepcionaram o 25 de Abril de 1974, corro o risco de receber como resposta não aquilo de que se aperceberam naquela ocasião, mas o que sentem no presente.

Abandonei Goa em 1962, com destino a Lisboa, depois da invasão do Estado Português da Índia, ocorrida em 18 de Dezembro de 1961. Fui incorporado no serviço militar em 25 de Janeiro de 1963, tendo sido mobilizado para o norte de Angola, onde combati de 28 de Maio de 1965 a 31 de Maio de 1967. 

A meu pedido fui desmobilizado em Moçambique, de onde regressei, definitivamente, para Portugal, em 8 de Agosto de 1974.

Apesar de não ter estado, naquela altura, na minha terra natal, vou procurar situar-me em Goa, no dia 25 de Abril de 1974, para tentar responder a esse alguém imaginário.

Antes porém, necessito de expressar, de uma forma sintética, o que é que os goeses pensavam, a respeito da presença portuguesa, durante a minha juventude, isto é, antes da mudança da soberania.

Como as autoridades portuguesas nunca permitiram aferir a opinião dos goeses sobre o seu futuro, através de plebiscito ou referendo, o que posso apresentar é apenas o meu juízo de valor sobre essa matéria.
Ao tempo, aquilo de que me foi dado aperceber é que os goeses preconizavam três soluções, predominantes e distintas, para a sua terra:
Enquanto uns pugnavam pela sua independência, tanto em relação a Portugal como em relação à União Indiana, outros eram favoráveis à sua integração na União Indiana, e terceiros preferiam Goa autónoma, com ligações à União Indiana, mas federada a Portugal.

A manutenção de Goa como colónia ou província portuguesa devia ser apoiada por um reduzido número de pessoas.

Em termos político-religiosos, sendo os muçulmanos, e os professos de outras religiões, uma população minoritária e residual, de entre as duas predominantes, em regra, os cristãos tinham mais afinidades com Portugal, e os hindus com a União Indiana mas, por serem maioritários, não era seguro que os integracionistas na União Indiana pudessem vencer, embora, aparentemente, possa parecer que sim. 

Tenho sérias dúvidas quanto a esse tipo de inferências que se tiravam, e continuam a tirar, a esse respeito. Considero esse tipo de raciocínio simplista, precipitado e falacioso, porque no acto de “The Goa Opinion Poll”, que na prática se tratou de um referendo, realizado em 16 de Janeiro de 1967, - sublinha-se que foi mais de cinco anos depois de 18 de Dezembro de 1961-, os goeses decidiram votar contra a fusão no Estado de Maharastra. Posteriormente, em 30 de Maio de 1987, conseguiram que Goa fosse declarado Estado autónomo, embora dependente do Governo Central.

Isso significa que, na sua essência, havia uma nítida consciência colectiva goesa que queria manter-se autónoma, das demais populações do subcontinente indiano, por se considerar diferente das residentes para além da fronteira definidora dos seus limites territoriais.

Essa maneira de ser, própria dos goeses, parece ter sido germinada e desenvolvida desde os primórdios, através dos séculos, pelo menos desde o reino dos Kadambas, com Jayakexi I, no século XI, ao elevar Goa como capital do seu império mas, sobretudo, a partir da sua independência, ocorrida, algures entre 1367 e 1440, como há muito demonstrei (Valentino Viegas, As Políticas Portuguesas na Índia e o Foral de Goa, Livros Horizonte, Lisboa, 2005, 101-102).

Ela continuou a ser afirmada e dinamizada, consciente ou inconscientemente, com a conquista de Goa por Afonso de Albuquerque, em 25 de Novembro de 1510, chegando até aos nossos dias, com maior ou menor pujança e assertividade, conforme as mais diversas circunstâncias, mas mantendo sempre as características fundamentais do seu núcleo central, coeso e resistente, distinguidor de nós e dos outros, os tais residentes além-fronteiras, apesar de fortes e constantes fluxos migratórios a que esteve e continua a estar sujeita.

Em termos da sua História de longa duração, na essência, ela é de continuidade, às vezes com cortes mas sem rupturas significativas, muito embora a extensão territorial de Goa tenha variado ao longo dos tempos.
Se os goeses fossem chamados a votar, em plebiscito ou referendo, durante a governação portuguesa do Estado Português da Índia, caso se garantisse a liberdade de opinião e de voto, algo inexistente em Portugal continental e ultramarino, o resultado final dependeria muito das propostas em jogo, das campanhas de sensibilização, da capacidade de mobilização das pessoas, mais afastadas dos centros urbanos, e da aceitação das promessas dos intervenientes, porque tirando a população dos principais centros urbanos, como Pangim e Margão, a maioria da população não se preocupava com a temática das grandes questões políticas. O que lhe interessava era, sobretudo, o ganha-pão quotidiano.

É provável que ganhasse a facção favorável a Goa independente, mas com forte ligação tanto a Portugal como à União Indiana.

Porém nada disso aconteceu. Os factos são factos e a História é feita de factos e não de suposições.

A verdade é que a revolução dos cravos só se deu em Portugal, em 25 de Abril de 1974, alterando rapidamente e de forma radical toda a política ultramarina portuguesa.

Para os goeses peca por ser tardia e chegar muito atrasada, e essa demora foi fatal.

A partir desse momento, os governantes portugueses, saídos da revolução, quiseram libertar-se das colónias, dando-lhes independência o mais depressa possível.

Daí que, sem consulta prévia dos goeses, o Estado Português, que nunca havia reconhecido a invasão de Goa, na pessoa do seu Ministro de Negócios Estrangeiros, Dr. Mário Soares, em 31 de Dezembro desse mesmo ano, aceitou de forma oficial a integração e reconheceu a situação de facto existente no antigo Estado Português da Índia, sem conhecimento nem mandato dos goeses, e sem negociar e garantir um estatuto especial para Goa.

No intuito de mitigar a natureza impositiva dessa decisão e com vista a salvaguardar os interesses futuros, no artigo IV do “Decreto n.º 206/75 do Tratado entre a Índia e Portugal Relativo ao Reconhecimento da Soberania da Índia sobre Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli e Assuntos Correlativos”, anuncia-se:

Será concluído, o mais brevemente possível, um acordo cultural entre Portugal e a Índia. As Partes Contratantes acordam em tomar medidas para desenvolver contactos no campo cultural e, em particular, na promoção da língua e cultura portuguesas e na conservação de monumentos históricos e religiosos em Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli.

Assim, mais uma vez, desde a conquista portuguesa daquela terra oriental, Portugal e a Índia decidiram sobre Goa, sem jamais darem a palavra aos goeses, para deliberarem sobre o seu futuro.

Os goeses compreendem:

Que perante a teimosia de Salazar, a União Indiana tenha recorrido à força, não para libertar Goa mas para se apossar daquilo que considerava ser parte integrante do seu território, confundindo a unidade geográfica com unidade política, algo que nunca aconteceu na história do subcontinente indiano.

Que, em virtude do conturbado período pós-revolucionário de 25 de Abril de 1974, a diplomacia portuguesa, encabeçada por Mário Soares, tenha querido cortar definitivamente com todas as questões pendentes relativas ao seu antigo império.

Até percebem as razões que terão levado Portugal a aceitar a invasão de Goa como facto consumado; mas também entendem que uma coisa é solucionar politicamente uma dificuldade de momento, que inquietava Portugal, como país colonizador, e outra é não resolver um problema que subsistiu e se pretendeu ignorar.

Daí muitos goeses continuarem a andar tristes e desgostosos por não conseguirem deixar de se interrogar sobre o que outrora tiveram e agora não têm, ou seja, Goa independente.

Olham para o processo de descolonização mundial e, sobretudo para o português, e questionam sobre as razões mais profundas que terão levado à criação de novos países, designados de expressão portuguesa, e só Goa ter ficado abandonada à sua sorte, sendo de todos o melhor preparado.

Comungam e avalizam as palavras do general António Ramalho Eanes, Presidente da República Portuguesa que, entre diversas outras passagens abonatórias, escreveu:

“Outro destino merecia Goa, bem diferente do que sofreu”… ”possuía ou podia criar todas as condições para decidir sobre o seu futuro e viver em paz e progresso”… ”faltou a Salazar o golpe de asa para fazer de Goa o Brasil do Oriente” (“A injustiçada Goa”, in Revisitar Goa, Damão e Diu, 1.º Ciclo de Conferências da Cooperativa Militar, Liga dos Combatentes, Lisboa, 2010, pp. 15-19). 

A prova da negligência no cumprimento do artigo IV do Decreto n.º 206/75, designadamente, “na promoção da língua e cultura portuguesas”, revelou-se por uma lenta agonia da utilização da língua portuguesa nos meios de comunicação social em Goa. Até o resistente O Heraldo, primeiro diário de todo o Ultramar português, deixou de publicar na língua de Camões, em 1983.

Graças à influência do goês Homem Cristo Prazeres da Costa, filho do falecido Amadeu Prazeres da Costa, antigo redactor principal e editor de O Heraldo, a partir de 6 de Setembro de 2020, foi introduzido, nesse jornal, uma secção semanal em língua portuguesa que, apesar de ter sido publicada regularmente, apenas sobreviveu até 3 de Abril de 2022.

Por causa da pressa com que Portugal quis libertar-se do problema ultramarino, Nehru, que havia prometido e garantido auscultar a vontade dos goeses, quando viu reconhecido oficialmente, pelo governo português, a situação de facto existente no antigo Estado Português da Índia, bateu as palmas de contentamento e depressa esqueceu as suas promessas.

Como prova da existência daquele compromisso oficial, recordo aquilo que o primeiro-ministro indiano havia dito, “dirigindo-se à Comissão do Congresso de Uttar Pradesh, em Sitapur, em 21 de Agosto de 1955: 

«Não é que cobicemos Goa. Aquele pedacito de território não faz diferença a esse grande país. Não temos nenhum desejo de impormo-nos ao povo de Goa contra os seus desejos. É a eles que cabe escolher definitivamente». «Nós temos assegurado aos goeses de que é a eles que compete estabelecer o seu futuro e dei-lhes ainda, mais garantias sobre a sua religião, língua e costumes».

E, em 6 de Setembro, falando no Rajya Sabha (câmara alta do Parlamento da Índia), repetiu a mesma ideia, mas agora de forma mais incisiva: 
«Desejo tirar da cabeça de toda e qualquer pessoa a ideia de que nós estamos apostados a coagir ou compelir o povo goês a entrar na União Indiana» (António Bruto da Costa, Goa: A terceira corrente. Discursos, artigos, cartas e defesas forenses, Goa, sem data, p. 340).

Se porventura a consulta pública tivesse acontecido, ninguém está em condições de garantir qual seria o veredicto, mas uma coisa é certa, a dúvida, que continua a pairar no ar, teria sido desfeita.

É indesmentível que, com o desfecho de 18 de Dezembro de 1961, Goa teve democracia, liberdade de reunião, de expressão e de voto, alguns anos antes de Portugal, mas isso está longe de satisfazer os anseios de muitos naturais, daí haver goeses, em Goa e em Portugal, que dizem: 

Sabemos que Mário Soares, honra lhe seja feita, foi o pilar da democracia no país mas, quanto à sua conduta em relação a Goa, temos de afirmar, sem receios nem rebuços que, desprezando a vontade dos goeses, cedeu em toda a linha à União Indiana, quando podia negociar e fazer algo de marcante e duradoiro por Portugal e por aquela que foi a jóia da coroa portuguesa.

Apesar de terem decorrido cinquenta longos anos, não há borracha que consiga apagar a profunda mágoa que, muitos de nós, ainda sentimos!
Dói, é difícil imaginar quanto dói, quando estamos em Goa e somos considerados estrangeiros na terra onde nascemos!

Texto baseado na conferência realizada na Fundação Oriente sobre “50 anos do 25 de Abril”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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