A morte do Papa Francisco não é apenas uma perda para a Igreja Católica, uma perda cujo sentido e alcance iremos avaliar no próximo futuro. Ela representa, no atual estado de confusão e ansiedade que reinam no mundo, uma perda enorme para toda a Humanidade. Tive oportunidade em tempos, a convite do Centro de Reflexão Cristã, de tecer algumas considerações sobre o conceito de Paz defendido e proclamado por Francisco. Permito-me aqui retomá-las. Vale a pena tomar como ponto de partida para uma reflexão sobre a paz a distinção feita na encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco entre “arquitetura da paz” e “artesanato da paz”. Que designam estes dois termos, no pensamento do Papa? Arquitetura da paz é o conjunto de soluções institucionais, aos diversos níveis, que constroem, através de “quadros normativos e acordos institucionais”, os fundamentos objetivos da paz. Já o artesanato da paz representa um conjunto de “transformações artesanais realizadas pelos povos, onde cada pessoa pode ser um fermento eficaz com o seu estilo de vida diário”, pois “as grandes transformações não são construídas à escrivaninha ou no escritório” (Fratelli Tutti, 231). A arquitetura da Paz promove a paz entre os Estados; o artesanato da Paz promove a paz entre os homens de diferentes pertenças e identidades, através do seu mútuo reconhecimento como iguais na sua humanidade e no mútuo respeito das suas diferenças. Este artesanato não se faz nas chancelarias, faz-se diretamente entre os cidadãos. E é nessa plenitude de esperança que se inscreve a mensagem de Francisco sobre o artesanato da paz. Nenhuma arquitetura institucional poderá mais do que mitigar e tentar controlar a violência que está em nós: por isso a paz se constrói mais duradouramente na aprendizagem concreta por pessoas concretas da compreensão e entreajuda em que se baseia a nossa própria possibilidade de viver juntos. Mas, como avisa o Papa, "o árduo esforço por superar o que nos divide, sem perder a identidade de cada um, pressupõe que em todos permaneça vivo um sentimento basilar de pertença" (Fratelli Tutti, 230). E cabe aos dirigentes e responsáveis escolher entre a construção de um tal "sentimento basilar de pertença" e a busca impiedosa de soluções de dominação e de força através da guerra de todos contra todos, tão intrínseca à nossa natureza, guerra que "se nutre com a perversão das relações, com as ambições hegemónicas, os abusos de poder, com o medo do outro e a diferença vista como obstáculo" (Papa Francisco, mensagem para o Dia Mundial da Paz 2020, citado em Fratelli Tutti, 256). Mas não podemos ignorar que nas guerras há agressores e agredidos, há invasores e invadidos. E também que no decurso das guerras podem surgir situações que configuram verdadeiros genocídios. Como pensar então a construção de uma paz justa para todos? Sirva-nos para isso de guia mais este excerto da Fratelli Tutti: "Somos chamados a amar todos, sem exceção, mas amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano. Perdoar não significa permitir que continuem a espezinhar a própria dignidade e a do outro" (Fratelli Tutti, 241) . Perdemos um grande defensor da dignidade humana e da fraternidade entre todos os seres humanos, quaisquer que sejam as suas pertenças e as suas identidades. Lembraremos sempre o Papa Francisco! Diplomata e escritor