A paternidade e a advocacia em tempos de pandemia
No momento em que escrevo este artigo, o país prepara-se para desconfinar, uma vez mais.
Este confinamento, porém, deixou mazelas difíceis de sarar. Ao contrário de março do ano passado, em que, como que inebriados, alinhámos numa espécie de experiência sociológica coletiva, desta vez não. Ninguém pode dizer que foi ao engano, todos sabíamos, melhor ou pior, o que nos esperava, especialmente, aqueles que como eu comungam a paixão pela profissão e o amor pela paternidade.
Ser pai de três filhos e advogado, em tempos de pandemia, parece, nos dias que correm, uma equação difícil de resolver.
De um lado, a necessidade de cumprir os prazos judiciais, assegurar a resposta aos clientes em tempo útil e a necessidade de nos mantermos atualizados face à profusa e intensa produção legislativa. Do outro lado, a necessidade de acompanhar a atividade escolar dos nossos filhos, o equilíbrio (difícil) entre as horas passadas à frente da televisão ou do tablet, os passeios indispensáveis ao ar livre e a nossa compreensão face às restrições a que estão sujeitos.
Por mais empenho e compromisso que se imprima em tudo o que se faça, fica sempre a sensação de uma certa imperfeição e, simultaneamente, impotência em cumprir de forma plena e bem-sucedida as nossas atribuições.
É como se quiséssemos fazer tudo bem, mas na verdade, temos a plena consciência de que não fomos particularmente brilhantes em nada daquilo que fizemos. Um misto de desalento e frustração, enquanto ansiamos que os dias passem o mais rápido possível, as escolas e os tribunais reabram, as conservatórias e as repartições de finanças retomem o seu funcionamento e possamos regressar à nossa vida normal.
Habituámo-nos, nos últimos tempos, a ouvir falar do novo normal, mas na verdade, todos temos saudades do bom e velhinho normal...
É comum dizer-se que o ser humano é, na sua generalidade, um animal de rotinas, e não me parece que venha mal ao mundo que assim seja. As rotinas dão-nos previsibilidade, segurança jurídica, conforto e tranquilidade. Quebrar essas rotinas e fazer do improviso o nosso dia-a-dia, gera ansiedade e incerteza, e em nada contribui para o nosso bem-estar.
As rotinas têm também a virtude de permitir uma clara e salutar separação entre a nossa vida pessoal e profissional. Uma coisa é levar trabalho para casa, outra coisa, bem diferente, é fazer da casa o nosso local de trabalho. No caso dos advogados essa tarefa
é ainda mais difícil, porque a atividade assenta num princípio basilar de confiança, respaldado pelo dever inviolável e inalienável de sigilo profissional, que pressupõe uma obrigação acrescida de recato e concentração. Conciliar o desempenho das nossas funções e, simultaneamente, manter intacta a barreira entre a vida pessoal e profissional, é uma tarefa hercúlea, quando ambas passam a coabitar no mesmo espaço.
É como se o percurso casa-trabalho / trabalho-casa fosse uma espécie de antecâmara freudiana entre o nosso consciente e o inconsciente, que funciona como catarse das nossas emoções e nos permite conviver entre as duas realidades de forma estanque, sem que uma contamine a outra.
Eliminar esse mecanismo de estabilização promove o caos e não permite que possamos usufruir plenamente da paixão pela nossa profissão e o prazer que retiramos da nossa vida pessoal, sem que no nosso subconsciente, fique a sensação de que estamos a preterir uma em benefício da outra.
É curioso e paradoxal ao mesmo tempo, pensar que todos ansiávamos por dedicar mais tempo aos nossos filhos, mas quando nos é dada essa oportunidade, ainda que involuntariamente, apercebemo-nos, que esse acréscimo de tempo não é, necessariamente, sinónimo de qualidade.
Work-life balance pressupõe que o trabalho e a vida pessoal estejam, cada uma delas, devidamente individualizadas e sopesadas no seu prato da balança e não envoltas dentro de uma máquina em centrifugação.
É, pois, inegável que esta pandemia vai deixar marcas profundas e indeléveis em todos nós, e que perdurarão, muito provavelmente, para além da nossa existência. Sem pretender menorizar o impacto e o drama das vítimas do Covid e dos seus familiares, há um lado oculto e perverso, cuja real dimensão ainda se desconhece, e que não se esgota, apenas, no plano económico.
Mas há também ilações positivas a retirar. O teletrabalho conquistou patrões e organizações e veio para ficar, a pandemia exigiu um maior grau de confiança entre todos os colaboradores e funcionou como teste do algodão para desmistificar o estigma e afastar a conotação negativa a que, por muitos, lhe era associado.
Advogado e Presidente da Associação Internacional de Jovens Advogados de Língua Portuguesa