A palavra dos filósofos
O tempo que vivemos parece particularmente propenso à reflexão filosófica e, de facto, os mais proeminentes pensadores contemporâneos têm lançado ensaios em que a pandemia está presente. De Giorgio Agamben e Peter Sloterdijk, ambos chamando a atenção para a onda autoritária que se instalou com a pandemia, a Yuval Noah Harari que alerta para os perigos da monitorização biométrica que acatamos com normalidade, passando pelo comunista complexo (assim se define) Slavoj Žižek, que, no mais recente livro, A Pandemia que Abalou o Mundo (2020), anuncia a ruína do capitalismo, incluindo Daniel Innerarity, que publicou recentemente Pandemocracia. Una filosofía de la crisis del coronavírus, que escreveu na primavera de 2020. Nesta obra escrita num tempo que já parece longínquo, o filósofo basco que nos habituou às reflexões sobre o valor da política, não deixa de abordar o seu tema predileto, mas numa perspetiva dos valores e qualidades que são postos à prova perante as dificuldades que enfrentamos. Aliás, esse debate tem atravessado o espaço público a propósito da comunicação de crise, com fortes críticas às dificuldades que os decisores políticos, nacionais e internacionais, têm experimentado para transmitir informação e fixar prioridades sociais. Nem tudo se resume à volatilidade da situação que vivemos, mas a incerteza constante é de facto um enorme teste também ao modelo de comunicação política que se estabelece como assertivo e coerente.
Se concordamos que a única certeza é a incerteza (já vamos na quarta vaga viral e não nos atrevemos a dizer o que vai acontecer nos próximos meses), e apesar do processo de vacinação, que decorre a ritmo intenso nos países desenvolvidos, nos deixar mais tranquilos, basta alargar o espetro do nosso olhar para (pelo menos) nos interrogarmos. O Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, tem alertado para a enorme desigualdade e injustiça no processo de vacinação: em fevereiro deste ano, enquanto 10 países dispunham de 75% das vacinas, 130 países ainda não haviam recebido uma única dose. Neste sábado, por ocasião do lançamento em Lisboa de duas obras comemorativas dos 65 anos da adesão de Portugal às Nações Unidas, António Guterres sublinhava como estamos todos em perigo quando deixamos sem vacinação largas franjas da população mundial. Valorizando a rapidez com que foi possível produzir vacinas que são agora a nossa esperança, comentava: "o que sobrou em capacidade científica, faltou em termos de solidariedade".
Daniel Innerarity parte da etimologia de pandemia (uma doença que afeta todos, ao contrário da epidemia que se confina a uma área geográfica) para refletir sobre a impotência perante um fenómeno que tem uma dimensão global e para o qual não estamos preparados porque requer mais integração política e mais reforço das instituições transnacionais. É nessa mesma linha que António Guterres apela ao multilateralismo: nunca como agora precisámos de agir em sintonia, não só por causa desta crise sanitária, como pelos desastres que se vislumbram com a crise climática. Os incêndios e mortes no Canadá são exemplo do que se aproxima.
Um vírus destruiu as economias de Norte a Sul e desfez a arrogância de muitas convicções. Diz-nos José Gil nos seus "Escritos da pandemia" que também incluem a reflexão sobre a crise climática: "O que vem aí, ninguém sabe. Adivinha-se, teme-se que seja devastador. Em número de mortes, em sofrimento, em destruição. Mas, como não temos uma ideia clara do que poderá ser uma tal catástrofe, a ignorância e a confusão amplificam o nosso medo. Será um desastre planetário e regional, coletivo e individual, já presente e ainda futuro, conhecido e familiar, mas sempre longínquo e estrangeiro, destinado aos outros, mas cada vez mais perto." (O Tempo Indomado, 2020)
Tanto a crise sanitária como a crise climática tornaram mais evidentes os desequilíbrios, e se o medo parece aconselhar a que cada um se feche no seu círculo, o mundo global e interdependente não desapareceu. É preciso, porém, que as instituições globais tenham mais poder e capacidade para garantir melhor distribuição dos bens que são de todos. Palavra dos filósofos.
Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos