A nova desordem internacional

Vivemos um período de frenesim diplomático, que foi acelerado pelo conflito que a Rússia abriu contra o Ocidente, ao invadir militarmente a Ucrânia. Há muito que as chancelarias não andavam numa azáfama tão intensa. É o desenho de uma nova relação de forças internacional que está em jogo.

Exatamente uma semana após a visita do Presidente Xi Jinping a Moscovo, terá lugar em Washington e em várias partes do mundo -por videoconferência - uma nova Cimeira para a Democracia. Para, e não das democracias, como foi por vezes mal traduzido aqui entre nós. Este é um tema de relevo na agenda global do Presidente Joe Biden, que organizou a primeira cimeira em dezembro de 2021. A de agora tem uma vez mais o seu patrocínio, em ligação com os líderes da Coreia do Sul, da Costa Rica, dos Países Baixos e da Zâmbia. António Guterres falará na sessão inaugural, o que permitirá sublinhar que a iniciativa não é feita à revelia do sistema multilateral.

Os tópicos incluem questões fundamentais para a salvaguarda e a consolidação das democracias: os direitos humanos, a inclusão e a igualdade de direitos e oportunidades, entre todos e claro entre homens e mulheres, a prosperidade partilhada, a independência e a eficiência dos sistemas de justiça e das instituições em que assenta o poder, o combate ao terrorismo e a outros tipos de violência organizada, o papel das associações de cidadãos e do sector privado, e ainda a resposta concertada aos desafios globais.

Tudo muito adequado, mas de uma complexidade enorme. Na essência, a intenção é clara: enfatizar que a governação de base democrática é que faz a diferença entre os Estados. Essa é a mensagem que Biden tem procurado transmitir. Não é fácil. Em muitos casos, a democracia é manipulada e desvirtuada por quem detém o poder. Certos líderes são bem mais hábeis nos jogos de espelhos, na criação de ilusões, que na defesa da integridade e da sustentabilidade das instituições, e dos direitos dos cidadãos. A democracia política tem de ser vista como a basílica da Sagrada Família de Antoni Gaudí em Barcelona: a sua construção nunca pode ser dada nem por terminada, nem garantida.

Quando se reuniram esta semana em Moscovo, com toda a pompa, luxo e circunstância, os Presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping não devem ter prestado qualquer tipo de atenção à questão da democracia, como é comummente entendida. Ambos veem as suas lideranças como eternas, resultantes de desígnios históricos. No caso de Putin, a imagem que fica é aquela que surgiu este Natal, em que aparece sozinho na capela dos czares no Kremlin, numa espécie de ligação direta e abençoada pelo divino. Quanto a Xi, trata-se agora de querer mostrar que está num patamar histórico ao nível de Mao Zedong, se não mesmo uns degraus acima, e que a sua missão inclui o estabelecimento de uma nova ordem internacional, construída à volta da China. Por isso, lançou recentemente três projetos com pretensões universais: a Iniciativa de Desenvolvimento Global; a Iniciativa de Segurança Global e a Iniciativa de Civilização Global. Na sua visão, a China definiria e tomaria a liderança desses três quadros de referência fundamentais. A Rússia, com ou sem Putin, desempenharia apenas um papel secundário, mas importante, de apoiante principal, sobretudo de fornecedor de matérias-primas e pouco mais.

Foi isso que ficou claro durante a sua estada em Moscovo. Xi perdeu uma oportunidade soberana de mostrar que teria unhas para desempenhar um papel desse género, transformador, no mundo que aí vem. Podia ter contribuído para o processo que poria fim à agressão contra a Ucrânia. Em vez de mencionar apenas a sua lista genérica de 12 pontos, sem os explicar, deveria ter insistido no primeiro parágrafo da declaração de princípios chinesa. Esse parágrafo é o ponto de partida: diz claramente que a soberania nacional de cada país deve ser estritamente respeitada por todos os Estados, nomeadamente quando se trata da integridade territorial. Uma afirmação assim colocaria Xi, pela positiva, no topo dos atores internacionais.

Embora tivesse poder para mais, preferiu um alinhamento completo com Putin, numa hostilidade sem limites contra os EUA. Atacou a política de blocos para, simultaneamente, consolidar o seu bloco com a Rússia. Depois disso, estamos agora num mundo menos seguro. Cada lado procurará atacar o oposto no seu calcanhar de Aquiles - sublinho esta frase. É caso, esta semana, para se ficar ainda muito mais apreensivo.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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