A nova construção europeia

Sendo sempre arriscado tirar conclusões ou fazer previsões enquanto a História está a acontecer, ao fim de poucos dias de uma guerra em que a União Europeia não é, à partida e directamente, parte, há já algumas lições para os europeus. A atractividade da Europa é maior do que os europeus imaginavam, os europeus valorizam mais o que têm do que os líderes políticos e os opinadores pensam, a História e os factos são uma força muito mais poderosa do que qualquer construção formal e a nossa defesa implica mesmo assumir maiores responsabilidades, mas não se faz à margem nem contra a NATO.

O valor da Europa

Há dois momentos fundamentais no discurso que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, fez aoParlamento Europeu, no dia 1 de Março. Num primeiro momento, Zelenskyy explicou o que está em causa nesta guerra. Não é o alargamento da NATO, nem a ameaça à segurança da Rússia, é "a escolha europeia da Ucrânia", que implica a possibilidade de aderir à União Europeia e a necessidade de poder ter a promessa de segurança que apenas a pertença à NATO dá, e sem a qual a escolha europeia não é viável. A Ucrânia nunca quis entrar para a NATO para ameaçar a Rússia, quis a segurança da NATO para poder viver do lado de cá do mundo. E esse é o outro momento fundamental da intervenção de Volodymyr Zelenskyy junto dos deputados europeus. É quando o presidente explica que os ucranianos estão a lutar, e a dar a vida, pela Liberdade (a mesma liberdade que nós temos) que o intérprete se comove e soluça ao mesmo tempo que traduz. "Já passámos por duas revoluções, uma guerra e, agora, uma invasão total", para poder ter a Liberdade que só é possível no Ocidente. E, que, só é viável estando na União Europeia protegidos pela NATO. É por isso que a Ucrânia entrou em guerra. Porque se cedesse a Putin, nunca seria Livre.

Esta disponibilidade para lutar até à morte pela possibilidade de escolher a Liberdade é qualquer coisa que alguns do lado de cá não conseguem perceber. Não é submissão a Putin ou extraordinária coerência. É incapacidade para compreender. No essencial, são os mesmos que em 1989 não podiam, genuína e sinceramente, acreditar que o povo a viver no paraíso comunista desejasse, com todas as suas forças, viver no Ocidente. No mesmo Ocidente que eles diabolizam. Não perceberam isso então, e não percebem agora.

Quem tinha menos de 15 anos quando o Muro de Berlim caiu, quem tem hoje menos 45 anos, é muitas vezes acusado de não dar o devido valor ao mundo em que cresceu. Como se não percebessem qual era o mundo alternativo se a Guerra Fria tivesse terminado de outra maneira. Olhando para o que se passou nos primeiros dias da guerra, a verdade é que os que cresceram no pós-guerra fria parecem perceber perfeitamente bem o valor de poder viver em Paz e em Liberdade. E, mais do que isso, de tanto ouvir ao longo das três últimas décadas, acreditam que vivem numa ordem internacional assente em normas e não apenas na lei do mais forte. Por isso lhes parece inaceitável não fazer tudo o que seja possível para evitar o martírio dos ucranianos, inclusive parar a agressão russa pela força. Foram mais de trinta anos a ouvir dizer que o realismo era uma hipocrisia e os princípios o critério da política internacional. E agora chocam com a realidade. Mas também a influenciam. As suas manifestações nas ruas europeias não permitem que os governos europeus não façam tudo o que seja possível para travar a Rússia, sancionar o regime e castigar os oligarcas. Tudo menos entrar em guerra com uma potência nuclear.

O preço da segurança

Quando os americanos saíram do Afeganistão de forma caótica e sem coordenar com os europeus, primeiro, e quando traíram os franceses no negócio dos submarinos com a Austrália, depois, generalizou-se a ideia de que a Aliança Atlântica estava irremediavelmente fragilizada. Putin, também, terá acreditado nisso.

É verdade que o que se passou nos últimos meses enfraqueceu a relação entre os dois lados do Atlântico, mas a notícia da morte da NATO, (inclusive da morte cerebral, de que Macron tinha em tempos falado) foi prematura.

Subitamente, a Alemanha promete investir na defesa mais do que alguma vez admitiu, os suecos e os finlandeses participam em reuniões da NATO e admitem vir a fazer parte da Aliança Atlântica, a maioria dos Estados membros fala com naturalidade de passar a investir, de facto, pelo menos 2% do seu orçamento em segurança e defesa, e não foi problema aprovar por unanimidade o envio de armas para os ucranianos, o acolhimento imediato dos refugiados ou as sanções mais pesadas de sempre, porque houve a mesma compreensão da realidade entre todos os países da União Europeia. Afinal, o problema europeu não era, nunca é, institucional. Era, foi sempre, estrutural. Os europeus, de Helsínquia a Lisboa, de Varsóvia a Dublin passaram a partilhar uma ideia comum de ameaça, de perigo, e de segurança. Não porque as instituições estão desenhadas para se decidir por maioria ou para estabelecer uma visão centralista, mas porque a realidade se impôs.

O novo lugar da Europa

Há algum tempo que a Europa procurava um novo lugar no Mundo. Com a América a reorientar-se para o Pacífico, a China a ser uma ameaça económica, no imediato, e política e de segurança, um dia, e a Rússia a ser um factor de destabilização regional, os líderes europeus sabiam que a Europa precisava de perceber qual era o seu novo lugar no mundo e que custos é que esse lugar impunha.

A Comissão Europeia de Úrsula von Der Leyen anunciou-se, em 2019, como uma Comissão Geopolítica. Queria com isso dizer que sabia que o mundo era mais competitivo, que a economia era um, se não o, instrumento de poder da Europa e que a política europeia tinha de ser adaptada. A dupla transição Verde e Digital eram os instrumentos dessa estratégia geopolítica: ganhar relevância na economia verde, antecipando a transição, e perder irrelevância na economia digital, impondo regras globais.
Os últimos dias de Fevereiro de 2022 recordaram aos europeus que o poder sem a possibilidade, mesmo que remota, do uso da força, é um fraco poder. Podemos não ser uma aliança militar, mas não podemos deixar de estar dispostos a garantir a nossa segurança. Devemos essa rápida lição à agressão russa e à coragem e sofrimento dos ucranianos.

É cedo para saber quanto permanecerá deste sentimento, mas parece seguro que nesta matéria nada será como antes. Os europeus descobriram que têm interesses fundamentais comuns muito mais relevantes do que alguma vez tinham sentido, nas últimas décadas. Foi sobretudo isso que mudou. O resto, a disponibilidade para gastar em defesa, para coordenar a sua segurança com os aliados transatlânticos, para perceber o seu lugar no mundo, tudo isso vem por acréscimo. O que mudou é que os europeus tomaram consciência de que têm um modo de vida que merece e que tem de ser defendido. Isso, muito mais que os fundos ou as instituições, faz a Europa.


Consultor em assuntos europeus

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